Chamada Dossiê “Povos Indígenas na Política Global”
Nos últimos anos, a atuação dos povos indígenas em assuntos referentes ao “internacional” e ao “global” tem chamado atenção não apenas da mídia, como também de acadêmicos de Relações Internacionais (RI). Historicamente relegados às margens da disciplina e do fazer político, os povos indígenas ganharam mais visibilidade na literatura, aprofundando a ressignificação e a desestabilização de conceitos caros às RI e imprimindo vigor às discussões empreendidas nas décadas anteriores nessa disciplina. Com efeito, a introdução de múltiplas perspectivas indígenas tem ampliado e diversificado o campo epistemológico das RI, rompendo com visões hegemônicas. Inicialmente, a produção teórica centrava-se na relação entre estes sujeitos e temas como soberania, diplomacia e fronteiras, apontando para a indigeneidade enquanto uma categoria analítica relevante para questionar os limites ontoepistêmicos da área (Beier, 2009; Shaw, 2008).
Nos anos mais recentes, a ênfase na alteridade e no seu potencial desestruturante da ordem encontrou nas experiências destes povos, em especial na América Latina, novos insumos e inspirações para a reflexão analítica. Outras contribuições para este esforço repousam sobre as discussões transdisciplinares, mais precisamente naquelas reunidas sob o guarda-chuva decolonial e na Antropologia (Blaser, 2009; De la Cadena, 2010; Escobar, 2012; Mignolo, 2012; Quijano, 2014; Stengers, 2005). Assim, pluriverso, ontologia política, relacionalidade e cosmopolítica vêm adquirindo destaque entre os termos mobilizados pela academia, em alguns casos animados pelo fenômeno das mudanças climáticas, do antropoceno, do extrativismo e pelas implicações destes (Picq, 2020; Rojas, 2016; Tickner e Blaney, 2017). Plurinacionalidade, interculturalidade, bem viver (e suas contrapartes originárias), entre outros, também passaram a figurar nas produções de RI, ainda que por vezes incorporados mais como conceitos ou ferramentas analíticas que como projetos políticos.
Desse modo, a multiplicação de análises sobre povos indígenas parece apontar tanto para a compreensão dos mesmos enquanto sujeitos políticos quanto para contradições. Por um lado, os trabalhos evidenciam as proposições dos povos indígenas, que denunciam o caráter excludente e dominante da prática diária das relações internacionais e da disciplina, até o ponto de considerar sua atuação internacional e global como uma diplomacia marginal (Nachet, 2021). Por outro lado, a tensão observada anteriormente possui implicações importantes para a política da produção de conhecimento: entre a mobilização/fermentação de projetos indígenas e seu enquadramento pela intelectualidade não-indígena, de modo a acentuar a singularidade do Outro. Daí as críticas apontando para os perigos da essencialização e, por conseguinte, despolitização das discussões (Chandler e Reid, 2020; Gaussens et al., 2024).
Diante desse quadro, o presente dossiê temático visa a reunir contribuições de pesquisadoras(es) que se dedicam aos estudos sobre povos indígenas na política internacional. Encoraja-se em especial – ainda que não exclusivamente – a submissão de manuscritos sobre os seguintes temas:
i) Como a atuação política dos povos indígenas (seja através de fóruns transnacionais, alianças pan-indígenas, articulações globais de lutas de povos dominados, ou resistências a megaprojetos, entre outras iniciativas) tensiona conceitos tradicionais como política, soberania, cooperação internacional e governança global?
ii) Em que medida e por quais mecanismos tais práticas subvertem ou são cooptadas pelas estruturas hegemônicas do sistema internacional?
iii) De que maneira as filosofias e cosmovisões indígenas contestam as lógicas coloniais do antropoceno, do extrativismo e da geopolítica do conhecimento?
iv) Como essas resistências são traduzidas (ou distorcidas) em discursos de sustentabilidade e direitos humanos?
v) Quais os riscos e contradições da incorporação ou apropriação de conceitos indígenas pela academia e pelas instituições internacionais?
vi) Como evitar que a "identidade indígena" seja reduzida a um marcador de alteridade sem implicações políticas, esvaziando a capacidade de ressonância de suas demandas concretas por soberania, demarcação e autodeterminação?
Para além de reflexões advindas de estudos sobre povos indígenas, estimula-se a escrita por e/ou em parceria com autoras(es) indígenas, bem como a participação de vozes advindas de movimentos, organizações e coletivos indígenas. Tais contribuições podem tanto engajar com e contra as RI como campo do conhecimento, mas também propor algo original sobre suas atuações e vínculos políticos, públicos e globais, capazes de desafiar a prática política moderna e colonial. Em tais projetos, a escrita em primeira pessoa e a expressão de sujeitos coletivos é bem-vinda, assim como todo modo inovador de expressar pensamentos e práticas.
Incentivam-se, ainda, contribuições que desafiem a separação moderna entre "local" e "global", assim como as hierarquias que insistem em associar indígenas a uma existência passiva, local e exótica, restrita às dimensões culturais da vida social e política. Em tempos de crise climática, avanço do extrativismo e reconfiguração de fronteiras, busca-se problematizar tanto a agência indígena em fóruns transnacionais quanto os limites impostos por estruturas coloniais de conhecimento e poder. Com isso, espera-se que este dossiê temático da Monções ofereça insumos para pensar as múltiplas formas de analisar criticamente os vínculos entre povos indígenas e a política internacional.
Prazo para recebimento de artigos: 20 de outubro de 2025
Lançamento do número: julho de 2026
Organizadores:
Alcineide Piratapuya (UnB)
Ana Carolina Teixeira Delgado (PPGRI/Unila)
Tchella Fernandes Maso (UFRR/UnB)
Willy Ramos Delvalle (ENS/PSL)
Referências
BEIER, J. Marshall. International Relations in Uncommon Places: Indigeneity, Cosmology, and the Limits of International Theory. New York: Palgrave MacMillan, 2009.
BLASER, Mario. Political Ontology: Cultural Studies without ‘Cultures’? Cultural Studies, vol. 23, n. 5-6, pp. 873-896, 2009.
DE LA CADENA, Marisol. Indigenous Cosmopolitics in the Andes: Conceptual Reflections beyond “Politics.” Cultural Anthropology, vol. 25, n. 2, pp. 334-370, 2010.
ESCOBAR, Arturo. Más allá del desarrollo: postdesarrollo y transiciones hacia el pluriverso. Revista de Antropología Social, vol. 21, pp. 23-62, 2012.
GAUSSENS, P. et al. Critique de la raison décoloniale: sur une contre-révolution intellectuelle. Paris: L’échappée, 2024.
MIGNOLO, Walter D. Local histories/global designs: Coloniality, subaltern knowledges, and border thinking. Princeton: Princeton University, 2012.
NACHET, L. Diplomaties marginales: les peuples autochtones au sein des négociations climatiques internationales. Négociations, vol. 2, n. 36, pp. 49-68, 2021.
PICQ, Manuela. Resistance to Extractivism and Megaprojects in Latin America. In: VANDEN, Harry E.; PREVOST, Gary (eds.). The Oxford Encyclopedia of Latin American Politics. Oxford: Oxford University Press, 2020, pp. 1-27.
QUIJANO, A. Otro horizonte de sentido histórico. América Latina en Movimiento, n. 441, 6 dez. 2014.
ROJAS, Cristina. Contesting the Colonial Logics of the International: Toward a Relational Politics for the Pluriverse. International Political Sociology, vol. 10, n. 4, pp. 369-382, 2016.
SHAW, Karena. Indigeneity and Political Theory: Sovereignty and the Limits of the Political. London: Routledge, 2008.
STENGERS, Isabelle. The Cosmopolitical Proposal. In: LATOUR, Bruno; WEIBEL, Peter (eds.). Making Things Public: Atmospheres of Democracy. Cambridge: MIT, 2005, pp. 994-1003.
TICKNER, Arlene B.; BLANEY, David L. Worlding, Ontological Politics and the Possibility of a Decolonial IR. Millennium, Journal of International Studies, vol. 45, n. 3, pp. 1-19, 2017.