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Presença e/ou ausência da História Quilombola no currículo: análise dos livros didáticos utilizados no ensino médio integrado
Presencia y / o ausencia de Historia Quilombola en el plan de estudios: análisis de los libros de texto utilizados en la escuela secundaria integrada
Presence and / or absence of Quilombola History in the curriculum: analysis of textbooks used in integrated high school
Fronteiras: Revista de História, vol. 22, núm. 40, pp. 173-192, 2020
Universidade Federal da Grande Dourados

Artigos

Universidade Federal da Grande Dourados 2020

Recepção: 24 Agosto 2020

Aprovação: 09 Dezembro 2020

DOI: https://doi.org/10.30612/frh.v22i40.13267

Resumo: A partir da aprovação da Lei nº 10.639/2003, o ensino da história e cultura africana e afro-brasileira passou a ser obrigatório na Educação Básica. Neste artigo, analisamos o cumprimento dessa prerrogativa legal, identificando a presença/ausência da temática afro-brasileira e africana, na qual a história quilombola se insere, no Ensino Médio Integrado (EMI), ofertado pelo campus do Instituto Federal de Alagoas (Ifal) em Santana do Ipanema. Realizamos tal intento mediante uma investigação de natureza quali-quantitativa, baseada nos métodos de pesquisa bibliográfica e da análise documental. Desse modo, num primeiro momento, revisitamos as políticas públicas educacionais destinadas à visibilização das comunidades quilombolas no âmbito da Educação Básica. Em seguida, analisamos a presença/ausência do debate sobre a questão afro-brasileira e africana em livros de História aprovados no PNLD e disponibilizados ao campus Santana do Ipanema, no período de 2015 a 2020. Apresentamos, ainda, a oferta de um vídeo educativo, que reconstrói as memórias de uma comunidade remanescente em Alagoas, como recurso didático que oportuniza o debate da questão quilombola no currículo do EMI. Concluímos a reflexão apontando para a invisibilidade da temática e propomos a elaboração de materiais didáticos específicos que assegurem a presença da história e cultura quilombola no cotidiano escolar, a partir de um currículo antirracista.

Palavras-chave: História, Ensino, Currículo, Formação integral, Ensino médio integrado.

Resumen: Tras la aprobación de la Ley nº 10.639 / 2003, la enseñanza de la historia y la cultura africana y afrobrasileña pasó a ser obligatoria en la Educación Básica. En este artículo, analizamos el cumplimiento de esta prerrogativa legal, identificando la presencia / ausencia de la temática afrobrasileña y africana, en la que se inserta la historia quilombola, en el Bachillerato Integrado (EMI), que ofrece el campus del Instituto Federal de Alagoas (Ifal). en Santana do Ipanema. Este intento lo realizamos a través de una investigación de carácter cualitativo y cuantitativo, basada en métodos de investigación bibliográfica y análisis documental. De esta forma, en un primer momento, revisamos las políticas educativas públicas orientadas a visibilizar a las comunidades quilombolas en el ámbito de la Educación Básica. Luego, analizamos la presencia / ausencia del debate sobre el tema afrobrasileño y africano en los libros de Historia aprobados en el PNLD y puestos a disposición del campus de Santana do Ipanema, en el período de 2015 a 2020. También presentamos la oferta de un video educativo , que reconstruye la memoria de una comunidad remanente en Alagoas, como un recurso didáctico que brinda la oportunidad de debatir el tema quilombola en el currículo de EMI. Concluimos la reflexión apuntando a la invisibilidad del tema y proponemos el desarrollo de materiales didácticos específicos que aseguren la presencia de la historia y cultura quilombola en la vida escolar, a partir de un currículo antirracista.

Palabras clave: Historia, Enseñando, Plan de estudios, Educación Integral, Escuela secundaria integrada.

Abstract: After the approval of Law nº 10.639 / 2003, the teaching of African and Afro-Brazilian history and culture became mandatory in Basic Education. In this article, we analyze the fulfillment of this legal prerogative, identifying the presence / absence of the Afro-Brazilian and African theme, in which the quilombola history is inserted, in the Integrated High School (EMI), offered by the campus of the Federal Institute of Alagoas (Ifal) in Santana do Ipanema. We made this attempt through an investigation of a qualitative and quantitative nature, based on methods of bibliographic research and document analysis. In this way, at first, we revisit public educational policies aimed at making quilombola communities more visible in the scope of Basic Education. Then, we analyzed the presence / absence of the debate on the Afro-Brazilian and African issue in History books approved in the PNLD and made available to the Santana do Ipanema campus, in the period from 2015 to 2020. We also present the offer of an educational video , which reconstructs the memories of a remnant community in Alagoas, as a didactic resource that makes it possible to debate the quilombola issue in the EMI curriculum. We conclude the reflection by pointing to the invisibility of the theme and propose the development of specific didactic materials that ensure the presence of quilombola history and culture in the school routine, based on an anti-racist curriculum.

Keywords: History, Teaching, Curriculum, Integral education, Integrated high school.

Introdução

A aprovação da Lei nº 10.639/2003 marcou uma guinada histórica nas políticas públicas educacionais, oferecendo, em grande monta, novas perspectivas à inclusão da temática afro-brasileira e africana nas escolas das redes pública e particular da Educação Básica brasileira. Criada para tornar obrigatório o ensino dessa temática na modalidade, a lei gestou outras diretrizes no campo educacional. Com vistas a possibilitar a ascensão de narrativas históricas que reparam a exclusão de afro-brasileiros e africanos, subalternizados na memória nacional, a educação brasileira, ao menos na interpretação da lei, manifesta permanente esforço em defesa de práticas antirracistas.

Neste artigo, investigamos a capilaridade da temática afro-brasileira e africana, na qual se insere a história quilombola, nos livros didáticos disponibilizados pelo Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) e distribuídos no campus do Ifal em Santana do Ipanema, nos últimos cinco anos. Nosso objetivo é analisar a aplicação da Lei nº 10.639/2003 e seus desdobramentos nos materiais didáticos e no currículo do Ensino Médio Integrado, a partir da realidade identificada na instituição lócus da pesquisa.

Em vista disso, apresentamos, inicialmente, o ordenamento jurídico brasileiro que ampara a inclusão da temática quilombola no EMI, amplificando as oportunidades de transposição do quadro histórico de negligenciamento e omissão impostos a esses grupos historicamente marginalizados. Inserimos no presente debate, as Diretrizes Curriculares para as Relações Étnico-Raciais (2004) e a Educação Escolar Quilombola (2012), que se ancoram na valorização da história e cultura quilombola, para defender um projeto societário equitativo, na direção da integração dos saberes africanos e afro-brasileiros nos currículos.

Em seguida, ao avaliar a presença da temática afro-brasileira e africana nos livros didáticos, a partir do método da análise documental, comprovamos a predominância de narrativas hegemonicamente eurocêntricas nos materiais curriculares oficiais. Nesse contexto, se não podemos falar em “ausência" dos conteúdos previstos em lei, certamente indicamos que há uma presença incipiente da história e cultura afro-brasileira e africana nos exemplares disponibilizados pelo PNLD 2015-2020, o que reivindica da comunidade educacional a elaboração de recursos didáticos que deem visibilidades a tais populações.

Concluímos nossa investigação, sinalizando as comunidades remanescentes, espraiadas por todo o país, como possibilidades para a ressignificação e redimensionamento do lugar quilombola no universo formativo do EMI. Nessa direção, apresentamos o vídeo educativo como um fértil recurso didático na oferta de uma formação integrada, problematizando o apagamento da história e cultura afro-brasileira e africana, e reconhecendo o protagonismo negro na formação histórica do Brasil.

Ensino Quilombola para uma educação antirracista: um imperativo ético e legal

Nas últimas décadas, o debate acerca da equidade racial expandiu-se no país com a finalidade de reparar um processo secular de silenciamento da história e memória afro-brasileira e africana, manipulado para consolidar os interesses dominantes que endossam uma estrutura social reprodutora do racismo e da exclusão. Compreendemos que esse processo histórico assenta-se sob uma lógica social que, com base na exploração, nega a essas populações sua vocação natural à humanização. O "fantasioso episódio de uma abolição escravista concedida bondosamente por uma princesa branca” ilustra à perfeição o quadro de manipulação do protagonismo negro na história nacional e evidencia a reprodução das narrativas eurocêntricas que ainda balizam a sociedade pós-abolição. Em síntese, esse movimento de invisibilização ocorre sistematicamente desde a escravidão, tendo se aprofundado no pós-abolição sob o amparo das políticas públicas (GOMES, 2015).

Um século depois da oficialização do fim da escravidão no Brasil, a Constituição Federal (1988) provocou mudanças expressivas para grupos sociais historicamente marginalizados, como os quilombolas. Entre as prerrogativas legais, construídas sob os fundamentos defendidos pelo movimento negro, essas populações obtiveram o direito à posse de suas terras, espalhando-se pelo país como focos de re-existência. Assim, a Constituição pode, em alguma medida, ser considerada o germe das políticas afirmativas e reparativas que hoje voltam-se para essas comunidades tradicionais, reconhecidas pela Carta Magna como remanescentes quilombolas, o que possibilita a ressignificação da memória afro-brasileira e africana. O reconhecimento dos territórios quilombolas como patrimônio cultural nacional simboliza, ainda, um compromisso estatal com a superação da visão estereotipada e preconceituosa que recai sobre as manifestações culturais indígenas e afro-brasileiras. Nessa perspectiva, ao menos nas letras da lei, a Constituição representa um marco para a redução da desigualdade racial em terras brasileiras (MARQUES; GOMES, 2013).

Apesar da abertura legal, as populações quilombolas continuam a viver as agruras da exclusão e da invisibilidade. Concordamos com Souza (2012, p. 119) que as medidas para a travessia dessa conjuntura passam “pelo investimento na construção de uma cidadania democrática”. Isto posto, compreendemos o papel protagonista da educação para o enfrentamento do racismo, assumindo-se um instrumento antirracista. As políticas públicas educacionais, aprovadas no Brasil no começo do século XXI, permitem-nos pensar a democratização das relações sociais, ainda que num cenário de democracia restrita, desnaturalizando o preconceito racial e a segregação imposta às populações negras.

Historicamente, a educação brasileira reproduziu os ideais de uma elite capitalista, predominantemente branca, negando seu papel transformador no status quo e restringindo o acesso das populações negras aos saberes socialmente construídos. Já em fins do século XX, o movimento negro reforçou a luta pela valorização da sua história, cultura e identidade. Nesses enfrentamentos, a defesa em torno da educação antirracista ocupou centralidade, sendo compreendida por Gomes (2005) como parte de um conjunto de políticas públicas que assegurem plenas condições de vida e acesso igualitário a todos os bens sociais, sobretudo para as populações historicamente marginalizadas, negadas, silenciadas e excluídas da sociedade. Assim, a educação antirracista:

Em outras palavras, persegue o objetivo precípuo de desencadear aprendizagens e ensinos em que se efetive participação no espaço público. Isto é, em que se formem homens e mulheres comprometidos com e na discussão de questões de interesse geral, sendo capazes de reconhecer e valorizar visões de mundo, experiências históricas, contribuições dos diferentes povos que têm formado a nação, bem como de negociar prioridades, coordenando diferentes interesses, propósitos, desejos, além de propor políticas que contemplem efetivamente a todos. (SILVA, 2008, p. 490).

A aprovação da Lei nº 10.639/2003 representa um ponto de inflexão na escalada histórica de invisibilidade dos povos negros. Modificada cinco anos depois pela lei nº 11.645/2008, para inserir a história indígena, o normativo torna obrigatório o ensino da história e cultura africana e afro-brasileira nos currículos da Educação Básica, onde se insere o Ensino Médio Integrado. Nesse contexto, pode ser compreendida, ainda, como um marco identitário na afirmação do protagonismo negro na formação brasileira, como explicita a redação do dispositivo:

§ 1º O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil. (BRASIL, 2003).

A despeito de tais promessas, importa-nos avaliar se o quadro atual sinaliza o cumprimento da lei, valorizando a pluralidade étnico-racial nas práticas educativas no âmbito do Ensino Médio Integrado, projetado para ofertar uma formação que compreenda os sujeitos como omnilaterais, completos, inteiros, na direção da emancipação e de uma sociedade com equidade. Apesar da história nos apresentar uma educação reprodutivista da desigualdade e exclusão, pensar nas práticas cotidianas do universo escolar como multiplicadoras dos valores quilombolas - experenciados na religiosidade, nas memórias, na ancestralidade - é conceber a educação como parte essencial no desmonte da estrutura racista que, em grande monta, continua a aprisionar, sob outras formas, aqueles que resistiram e abalaram o sistema escravista. Sob essa perspectiva, outros dispositivos legais destacaram-se no campo educacional a fim de transpor o abandono histórico das populações quilombolas no Brasil e propor políticas públicas afirmativas e reparativas destinadas às comunidades. Em meio ao efervescente debate em torno da inclusão das populações afro-brasileiras, o Ministério da Educação aprovou, em 2004, as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, na qual assume sua perspectiva de inclusão:

Garantir o exercício desse direito e forjar um novo modo de desenvolvimento com inclusão é um desafio que impõe ao campo da educação decisões inovadoras. Na reestruturação do MEC, o fortalecimento de políticas e a criação de instrumentos de gestão para a afirmação cidadã tornaram-se prioridades, valorizando a riqueza de nossa diversidade étnico-racial e cultural. (BRASIL, 2004, p. 5).

As Diretrizes para as Relações Étnico-Raciais estruturam-se em três princípios: (I) consciência política e história da diversidade, (II) fortalecimento de identidades e direitos, e (III) ações de combate ao racismo e a discriminações. Nesta acepção, rompem o paradigma de educação unilateral, na qual os conhecimentos aparecem como sinônimos de inculcação moral. Também abdicam do ideário pedagógico de instrumentalização para o mercado de trabalho, para filiar-se à formação humana em todas as suas dimensões, em direção à emancipação (BONAMIGO, 2014). O documento fortalece a Lei nº 10.639/2003 ao admitir que o racismo disseminado nos ambientes educacionais repele o acesso de negras e negros à educação formal. O antídoto para o fracasso escolar da comunidade negra, que passa por uma ressignificação do lugar destinado aos afro-brasileiros no currículo oficial, seria a "estruturação de uma política nacional de educação calcada em práticas antidiscriminatórias e antirracistas” (BRASIL, 2004, p. 21). A materialização dessa proposta requer uma formação integrada, crítica, reflexiva, ativa e autônoma, o que enseja uma compreensão histórica que desvele as contradições de um sistema ideológico, político, social e econômico que sustentam resíduos do racismo e da discriminação no horizonte "democrático" do Brasil contemporâneo.

[…] a desigualdade racial é uma característica da sociedade não apenas por causa da ação isolada de grupos ou de indivíduos racistas, mas fundamentalmente porque as instituições são hegemonizadas por determinados grupos raciais que utilizam mecanismos institucionais para impor seus interesses políticos e econômicos. (ALMEIDA, 2019, p. 27).

Esse conjunto de sustentação jurídico-política precisa superar as tensões e ofertar, de um lado, uma formação docente que contemple o conhecimento histórico acerca das resistências escravas e da formação de quilombos, e, de outro, recursos didáticos e materiais curriculares que oportunizem a inserção desse debate, de modo qualificado, em sala de aula. Assim, a instituição da Educação Escolar Quilombola (2012) reafirmou a necessidade de refinamento curricular sobre a história e cultura quilombola e a problematização do processo de silenciamento (HAERTER, BARBOSA JÚNIOR, DUARTE, 2014). Esse movimento recomenda a problematização dos mecanismos produtores do silenciamento da história quilombola e dispõe-se a rever os conteúdos selecionados na esfera curricular. Identificamos uma intersecção importante entre a previsão legal e a corrente historiográfica da história vista de baixo. Apresentada pelo historiador inglês Edward Palmer Thompson (2012), tal concepção possibilita a ressignificação das narrativas históricas a partir da versão de pessoas comuns. Ao refutar a história construída em mitos, permite que grupos sociais, antes alijados do processo histórico, retomem seu protagonismo. Igor Guedes Ramos (2015) realça essa associação:

[…] não se devem mais julgar as formas de resistência e de poder por meio de um critério universal; é preciso resgatar as diversas formas de resistência uma vez que ajudam a questionar mecanismos de dominação que vigoram até atualidade e ainda são considerados naturais. (RAMOS, 2015, p. 417).

Na esteira das proposições antidiscriminatórias, a política revisionista dos conteúdos, aplicados no cotidiano escolar sobre a história africana e afro-brasileira, propõe o combate à discriminação racial (VITORINO, EUGÊNIO, 2017). Desse modo, vivificar a história das comunidades remanescentes quilombolas ressignifica não apenas o currículo, mas a própria memória brasileira num movimento mais humanizado. Dentre suas garantias, a Educação Escolar Quilombola (2012) inclui a formulação de projetos político-pedagógicos adequados às suas práticas, nas esferas municipal, estadual e federal, e outras mais, como a “elaboração de materiais didático-pedagógicos contextualizados com a identidade étnico-racial do grupo" (BRASIL, 2012, p. 12).

O desafio da contemporaneidade no campo educacional é efetivar os direitos garantidos pela legislação brasileira. No contexto do Ensino Médio Integrado, ofertado pela rede federal de educação científica, profissional e tecnológica, é imprescindível o compromisso docente com a formação integrada, perpassada pela valorização da memória quilombola. A seguir, passamos a analisar a presença/ausência da temática e a representação dos quilombolas nos livros didáticos, utilizados no campus do Ifal em Santana do Ipanema.

Capilaridade da temática afro-brasileira e africana no Ensino Médio Integrado: análise dos livros didáticos de História no Ifal - Campus Santana do Ipanema

Desde 2004, as Diretrizes Curriculares para as Relações Étnico-Raciais propõem uma mudança nos rumos da Educação Básica, no afã de valorizar a diversidade e promover a democratização do currículo, ressignificando vozes historicamente silenciadas:

Reconhecer exige que se questionem relações étnico-raciais baseadas em preconceitos que desqualificam os negros e salientam estereótipos depreciativos, palavras e atitudes que, velada ou explicitamente violentas, expressam sentimentos de superioridade em relação aos negros, próprios de uma sociedade hierárquica e desigual. Reconhecer é também valorizar, divulgar e respeitar os processos históricos de resistência negra desencadeados pelos africanos escravizados no Brasil e por seus descendentes na contemporaneidade, desde as formas individuais até as coletivas. (BRASIL, 2004, p. 12).

Assim, reconhecem o compromisso do Estado brasileiro com o respeito à história e memória desses espaços de resistência negra: os quilombos. Aprovada em 2012, a Educação Escolar Quilombola, enquanto modalidade de ensino, definiu como uma de suas diligências a criação de materiais didáticos pensados especificamente para aquelas comunidades e, ainda, para escolas que recebem estudantes oriundos delas.

Para que as instituições de ensino desempenhem a contento o papel de educar, é necessário que se constituam em espaço democrático de produção e divulgação de conhecimentos e de posturas que visam a uma sociedade justa. A escola tem papel preponderante para eliminação das discriminações e para emancipação dos grupos discriminados, ao proporcionar acesso aos conhecimentos científicos, a registros culturais diferenciados, à conquista de racionalidade que rege as relações sociais e raciais, a conhecimentos avançados, indispensáveis para consolidação e conserto das nações como espaços democráticos e igualitários. (BRASIL, 2012, pp. 14-15).

Na presente investigação, assumimos os pressupostos metodológicos da abordagem quali-quantitativa, por considerar que o estabelecimento de uma relação não dicotômica entre conhecimentos objetivos e subjetivos dialoga para a fortalecimento das pesquisas em educação (GAMBOA, 1995). Assim, salientamos que o fato de empregarmos dados quantitativos não insere tal artigo numa lógica mecanicista. Ao contrário, apoiamo-nos nas estatísticas para enriquecer a análise humanista, empreendida pelas abordagens qualitativas, retomando Gatti (2002). Recorremos, portanto, aos métodos da pesquisa bibliográfica e da análise documental, uma vez que se centram, fundamentalmente, em documentos como fontes prioritárias de informação. Sob um olhar interpretativo do historiador, visamos empreender uma análise sobres os limites do material estudado, orientando novas propostas e necessidades (PIMENTEL, 2001). Desse modo, procederemos à análise documental dos livros didáticos de História disponibilizados pelo Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), no campus do Ifal em Santana do Ipanema, no período de 2015 a 2020.

Elegemos para a análise, os livros didáticos destinados à 2ª série do Ensino Médio Integrado. Tal seleção justifica-se em virtude de os planos de ensino de História preverem o estudo da temática afro-brasileira e africana para essa etapa. Iniciamos nossa análise a partir da coleção “História Geral e do Brasil”, de Cláudio Vicentino e Gianpaolo Dorigo (2010), da Editora Scipione, utilizada entre os anos de 2015 a 2017. No Capítulo II, intitulado A colônia portuguesa na América, percebemos uma abordagem pertinente que, do ponto de vista histórico, questiona a quem interessa o projeto colonial imposto pela Corte Portuguesa. Nessa análise, o livro didático (LD) introduz as motivações que levaram à escravização de africanos para a alimentação das lavouras de cana-de-açúcar, a monocultura que aumentaria significativamente as divisas lusas. Publicado em 2013, o livro transita entre o registro do vocábulo escravo e escravizado, para referir-se aos africanos submetidos ao trabalho compulsório e desumano. O emprego do termo escravo, entretanto, não encontra aceitação nas atuais propostas antirracistas, uma vez que recusa o estado transitório da escravização e suaviza a carga violenta desse processo. Assim, o campo semântico do vocábulo escravizado carrega em si a luta por liberdade empreendida pelos africanos, porque:

Enquanto o termo escravo reduz o ser humano à mera condição de mercadoria, como um ser que não decide e não tem consciência sobre os rumos de sua própria vida, ou seja, age passivamente e em estado de submissão, o vocábulo escravizado modifica a carga semântica e denuncia o processo de violência subjacente à perda da identidade, trazendo à tona um conteúdo de caráter histórico e social atinente à luta pelo poder de pessoas sobre pessoas, além de marcar a arbitrariedade e o abuso da força dos opressores. (HARKOT-DE-LA-TAILLE, SANTOS, 2012, p. 8).

A obra apresenta os castigos sofridos pelos escravizados, como o açoite com chicote de couro cru - chamado bacalhau - e o aprisionamento de mãos e pés a algemas - o viramundo. Também identificamos nesse capítulo o retrato da estrutura social da colônia brasileira e o lugar ocupado pelas famílias africanas nela. O exemplar destaca os escravizados como a base da economia açucareira e apresenta a diversificação na exploração da mão-de-obra africana, que ia desde o trabalho nos engenhos até os serviços domésticos, executados pelas mulheres na casa grande. O livro apresenta a tela Uma senhora em seu lar, do artista francês Jean-Baptiste Debret, realçando o ofício subalterno dos escravizados numa estrutura predominantemente senhorial.



Figura 01: Uma senhora em seu lar
Fonte: Jean-Baptiste Debret, de 1823.

No capítulo III, o LD aborda exclusivamente o processo da diáspora africana. O deslocamento de grandes contigentes populacionais para o trabalho compulsório, a diáspora, é fato histórico de suma relevância para a compreensão dos fatores que levaram a África atual à crise humanitária. Por outro lado, a abordagem expressa no livro sinaliza, em alguma medida, compromisso com a educação antirracista, uma vez que reconhece a dívida histórica que o país tem com os povos africanos e seus descendentes na Diáspora. Nesse aspecto, o exemplar denuncia as estratégias perversas utilizadas na escravização de africanos, retomando o termo holocausto negro, utilizado pelo historiador brasileiro Jaime Pinsky (1998), que nos auxilia a dimensionar a amplitude desse processo. No lastro dessa discussão, a obra apresenta, pela primeira vez, uma das formas mais destacadas na resistência ao regime escravista: os quilombos. De modo muito sútil, relata características dessas comunidades negras livres e conta brevemente a história da maior delas, o Quilombo dos Palmares, liderado por Zumbi, no território da capitania de Pernambuco, hoje estado de Alagoas. Nos exercícios propostos, o LD problematiza a imagem de Zumbi como herói nacional, uma narrativa que resulta dos embates do movimento negro. Com tal discussão, promove uma intersecção com a cultura africana, advogando o respeito às manifestações religiosas, sob a ótica da inclusão. O espaço dedicado às contribuições africanas é bastante incipiente se comparado, por exemplo, às heranças das artes eurocêntricas e ao legado das invasões europeias, que influenciaram a economia e a política brasileira, e que mereceram ao menos dois capítulos da obra.

É no momento em que aborda, no capítulo XVII, a construção do Estado brasileiro, que o LD apresenta a exclusão de grupos escravizados da sociedade brasileira, ofertando uma análise histórica longitudinal, que propicia a compreensão dos processos de silenciamento voltados a tais populações. O estudo oferece uma análise acerca dos fenômenos dos quilombos como resistência à violência e opressão do sistema escravista. Anuncia, ainda, a permanência dessas tradições nas comunidades remanescentes quilombolas, informando haver, à época, 1,17 milhão de quilombolas no país. A obra apresenta um infográfico que expõe a construção da identidade negra como forma de resistência e explora também as revoltas africanas, que representaram abalos à organização senhorial, como a Revolta das Carrancas, em Minas Gerais, e das Malês, na Bahia. No capítulo XIX, o escravismo ocupa maior destaque, anunciado como a grande questão da sociedade brasileira em fins do século XIX. Essas discussões refletem a educação como um mecanismo antirracista, à medida que propõem um olhar diverso sobre os estereótipos construídos sobre os negros. Admitem, sobretudo, a existência de uma dívida histórica, preconizando políticas reparativas.

A escravidão deixou marcas profundas na sociedade brasileira. Preconceitos de cor, marginalização e abismos sociais, desvalorização do trabalho manual e desrespeito aos trabalhadores são apenas alguns traços deixados pela escravidão. Esse traços ainda são visíveis em seu cotidiano, em suas relações pessoais ou familiares? (VICENTINO, DORIGO, 2010, p. 258).

Ao analisar numericamente tais dados, identificamos que a presença da temática afro-brasileira e africana ocupa 12% do LD. Quando analisamos a presença dessa temática em relação apenas aos conteúdos ligados à História do Brasil, identificamos que o assunto representa 28% da das narrativas nacionais, conforme exibe o Gráfico 1. Desse modo, se não podemos acusar ausência da temática no material analisado, compreendemos, no entanto, que o quadro aponta a presença incipiente da história e cultura afro-brasileira e africana no livro didático, utilizado no contexto do EMI, comparada à hegemônica história eurocêntrica.



Gráfico 01 - Presença da temática afro-brasileira e africana no livro didático e na História do Brasil abordada no livro didático “História Geral e do Brasil” (2010).
Fonte: Elaborado pelos autores.

Avaliamos, ainda, a presença da temática na coleção “História em Debate”, de Renato Mocellin e Rosiane de Camargo (2016), da Editora do Brasil, também referente à edição destinada a 2ª série do Ensino Médio Integrado. O livro didático em questão foi disponibilizado para a utilização dos docentes do campus do Ifal em Santana do Ipanema no período de 2018 a 2020. Em sua abertura, a obra apresenta as noções modernas dos direitos humanos, que dão sustentação para os capítulos seguintes, que refletem os processos de escravização nas Américas. No Capítulo III, intitulado Colonização da América: exploração e resistência, o material didático versa sobre as motivações econômicas que levaram a Corte Portuguesa a implementar a escravidão, como forma de ampliar a monocultura da cana-de-açúcar, especialmente exitosa no litoral nordestino. Cumpre-nos ressaltar que a obra opta pelo uso do vocábulo escravos em detrimento de escravizados. Reafirmamos a inadequação nesse emprego, ante o caráter imutável que o termo adotado carrega, diminuindo as lutas em torno da liberdade africana e afro-brasileira. Em seguida, o LD oferece a seguinte definição para o termo quilombo:

[…] é uma palavra de origem banta, que, no período escravista da América Portuguesa, foi utilizada para designar o ajuntamento de escravos fugitivos. Nos quilombos, os negros se reuniam para fugir do trabalho escravo, proteger-se do “resgate" de seus senhores, cultivar lavouras para sua subsistência e dar continuidade a suas práticas culturais e religiosas. (MOCELLIN, CAMARGO, 2016, p. 86).

Compreedemos que conceituar os quilombos exclusivamente como uma resistência à escravidão invalida as continuidades históricas dessas organizações negras na atualidade e, consequentemente, nega as possibilidade de reconstrução dessa memória para uma narrativa que reconstrói as trajetórias negras. Nesse sentido, concordamos com a compreensão de Nascimento (2018, p. 98) de que o quilombo “foi também uma forma de organização política e social com implicações ideológicas muito fortes na vida do negro no passado, e que se projeta após a abolição, no século XX”. Ambas as obras, portanto, restringem os quilombos à Palmares, sem explicitar a existência de outras comunidades, ocultando as diferenças conceituais entre as várias organizações e, sobretudo, desconsiderando o caráter dinâmico das relações sociais compartilhadas por quilombolas, presentes ainda hoje nas comunidades remanescentes.

Ainda no mesmo capítulo, o LD reflete acerca do lugar que os escravizados africanos ocuparam na estrutura senhorial, mas essa abordagem ocorre de forma ainda mais incipiente em relação à primeira coleção analisada. Apesar disso, procede uma descrição das condições subumanas a que os escravizados foram expostos dentro dos navios negreiros, vindos da África. O exemplar descreve, de modo pouco profundo, as resistências desenvolvidas pelos escravizados, mas destaca os quilombos como uma reação que espalhou-se por todo país. O LD cita o Quilombo dos Palmares como referência nacional da resistência africana e questiona a intolerância religiosa e cultural, que diminui as vozes negras nas manifestações aceitas pela sociedade brasileira, o que dialoga com o que determinam as Orientações e Ações para a Educação das Relações Étnico-Raciais, do Ministério da Educação:

Ao enfatizar o ensino de história e cultura africanas e afro-brasileiras, deve-se buscar conhecer os espaços de tradição e de cultura afro-brasileira em suas diversas formas de preservação e manifestação: os tradicionais espaços religiosos como os terreiros, os congados, os batuques, folias de reis, maracatus, tambor de crioula, entre outros, que devem ser tomados como aspectos fundamentais para estabelecer vínculos com a ancestralidade, no que se refere a lugares de constituição de identidades da população negra. (MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, 2006, p. 113).

Nesse sentido, o LD caminha nessa direção, ao afirmar que:

Os terreiros - locais de cultos às divindades e prática dos rituais religiosos afro-brasileiros - passaram, nesse contexto, a constituir um local de assistência e apoio comunitário aos escravos. Dessa forma, promoveram a resistência e a preservação de tradições culturais que perduraram ao longo dos séculos e, presentes ainda hoje em todas a regiões do país funcionam como meio de resgate às origens africanas da cultura brasileira. (MOCELLIN, CAMARGO, 2016, p. 92).

Destacamos, ainda, que o LD destina dois capítulos para o estudo da história africana, sob um prisma duplo: primeiro, apresenta a exploração das nações imperialistas sobre o continente no século XIX, e, em seguida, problematiza os processos de emancipação das nações africanas. No Capítulo IX, intitulado Direitos violados, apresenta o quadro de desigualdade social e os desafios dele decorrentes, evocando políticas públicas que garantam o respeito aos direitos humanos. As imagens utilizadas para ilustrar temas como violência, miséria, discriminação e exclusão exibem pessoas negras, sinalizando o lugar do negro hodiernamente, tendo em vista que tais grupos sociais são os mais afetados pelos problemas sociais no Brasil.



Figura 02: Pessoas almoçam em restaurante popular na cidade de São Paulo (SP), 2014.
Fonte: História em Debate. Mocellin, Camargo, 2016, p. 246.

Consideramos que, pela sua natureza, o LD apresenta limites. No entanto, há de se enaltecer o espaço que a obra oportuniza para discussões mais amplas, que questionam o lugar do negro na sociedade. Partindo dessa premissa, identificamos nessa abordagem uma possibilidade significativa para ampliar a discussão e considerar o conhecimento inteiro, sem fragmentação, ao encontro da educação integrada. Assim, o trabalho pedagógico transdisciplinar - ao unir áreas distintas de conhecimento na elucidação de um quadro que apaga, silencia, oculta e exclui, ainda hoje, as comunidades afro-brasileiras e quilombolas - contribui para as práticas antirracistas. Ainda que não possamos falar em ausência da temática afro-brasileira e africana no LD, apontamos que uma educação antirracista exige maior presença negra nos currículos oficiais e, por conseguinte, nos recursos didáticos que dão suporte às práticas educativas no âmbito do EMI.



Gráfico 2 - Presença da temática afro-brasileira e africana no livro didático e na História do Brasil abordada no livro didático “História em Debate” (2016).
Fonte: Elaborado pelos autores.

Em relação à coleção História em Debate (2016), a temática africana e afro-brasileira responde, percentualmente, a 33% do LD e a 37% do conteúdo de História do Brasil. De modo geral, nossa investigação atesta uma presença moderada da temática afro-brasileira e africana nos livros didáticos apresentados. Esse panorama enseja a oferta de recursos didáticos que garantam um currículo e uma prática educativa efetivamente antirracista. O contexto do EMI requer recursos didáticos que criem pontes para a reescuta da história e memória, sendo as comunidades remanescentes quilombolas possibilidades vultosas nesse processo de ressignificação do lugar negro na memória coletiva.

Verificamos, outrossim, o distanciamento entre o que expressa a legislação educacional brasileira e a prática pedagógica efetiva. Há, portanto, dentro do currículo oficial do EMI, um processo que invisibiliza a história quilombola e que vai de encontro ao compromisso legal do Estado brasileiro, expresso nos dispositivos legais já apresentados. O Ensino Médio Integrado carece, pois, de produção de material didático específico sobre a memória quilombola.

Ofertando um recurso didático: o debate quilombola mediante o vídeo educativo

Em sua pedagogia libertadora, Paulo Freire (1987) evoca a importância da educação como transformação do estado de opressão, de exclusão e de injustiça. Diante do cenário apresentado, que comprova a incipiência do debate quilombola no universo formativo do EMI, é mister que todos os atores educacionais comprometam-se com a oferta de materiais curriculares e recursos didáticos, ainda que tal tarefa seja, por lei, do Estado. Frente a esse compromisso, no âmbito do Mestrado Profissional em Educação Profissional e Tecnológica (ProEFPT/Ifal), temos trabalhado para dar vez, voz e visibilidade à questão quilombola. Nesse sentido, como Produto Educacional resultante da nossa pesquisa, ofertaremos um vídeo educativo que reconstrói as memórias sociais da comunidade remanescente quilombola do Alto do Tamanduá, localizada no município de Poço das Trincheiras, sertão alagoano.

Espraiadas por todo o país, especialmente pelo interior do nosso território, as comunidades remanescentes apresentam-se como ricas possibilidades para o diálogo entre escola e memória quilombola. Somente em Alagoas, existem 68 comunidades remanescentes quilombolas, reconhecidas e certificadas pela Fundação Palmares. Destarte, com base na metodologia da história oral, o vídeo educativo visa combater o silenciamento quilombola, uma vez que se dispõe a salvaguardar a história e memória, vertendo-se num dispositivo antirracista. Assim, o recurso didático audiovisual pode oportunizar, ao docente e à escola, a valorização das vozes excluídas dos currículos oficiais, como preconizam os dispositivos legais brasileiros. A construção do vídeo será lastreada na corrente da história vista de baixo, que valoriza as trajetórias de gente comum em oposição às narrativas cristalizadas em mitos e heróis, ampliando o conhecimento regional acerca das continuidades históricas das comunidades de resistência.

Além de favorecer a ampliação do (re)conhecimento do contexto regional, o vídeo abre portas para a utilização em diversos contextos de ensino, uma vez que o cenário de negação de direitos e os esforços de resistência quilombola, seguem, em alguma medida, a mesma tônica, a mesma problemática. Sob esse aspecto, o vídeo educativo apresenta-se como um valioso recurso didático no contexto da Educação Profissional e Tecnológica, de um lado, e no Ensino Médio Integrado, de outro, posto que sinaliza com a crença na educação como transformação social, na direção da superação da educação unilateral, que aprofundou historicamente a exclusão dos negros na sociedade brasileira (RAMOS, 2008).

Ao integrar os conhecimentos afro-brasileiros e africanos, a formação integrada - no contexto da EPT - surge como parte essencial de um processo que visa deslegitimar a violência e a negação da história quilombola nos currículos oficiais do Ensino Médio Integrado. Nesse sentido, o vídeo educativo amplia o campo das práticas antirracistas na modalidade, concorrendo para a construção de um projeto societário onde não cabem racismo e discriminação. Sob essa ótica, contrariar a lógica da opressão é, em última instância, um ato de liberdade (FREIRE, 1987). De espectadora indiferente, a educação passa a ser ativa na luta pela igualdade, dando voz aos silenciados.

A oferta do vídeo educativo dá-se, ainda, em compasso com os centros de interesse do aluno, valorizando uma linguagem com a qual os jovens brasileiros tem cada vez mais afinidade. Desse modo, a potência didática dos vídeos ancora-se também na disseminação da internet e das mídias sociais, podendo servir como canal promotor da dinamicidade e da contextualização no universo formativo do EMI.

Nessa mesma direção, o vídeo educativo pode colocar-se como suporte à educação problematizadora e crítica, que não se aprisiona à tradição da educação narrativa, escrita. Assim, o recurso didático certamente contribui para realizar, pelo ensino, a travessia à educação autônoma, crítica e reflexiva. Sob esse prisma, a linguagem audiovisual pode ser entendida como parte de um processo mais amplo, que relaciona a educação à quebra de estigmas, estereótipos e preconceitos, considerando as populações afro-brasileiras e africanas a partir de seu protagonismo histórico.

Importante pontuar que o vídeo educativo coloca-se com um recurso que auxilia o docente a problematizar o lugar da memória quilombola na história brasileira, revelar os mecanismos produtores da exclusão social e propiciar um discurso histórico a partir das vozes silenciadas, com base no currículo oculto. Por óbvio, tal recurso favorece um debate que requer outros tipos de recursos didáticos, outros diálogos e outras perspectivas. O trabalho de superação da invisibilidade, do silenciamento e da exclusão histórica demandam o estabelecimento de interconexões, de múltiplas dimensões pedagógicas e do diálogo permanente entre professor-aluno e aluno-aluno. Nesse sentido, soa-nos inimaginável que, sozinho, o vídeo educativo cumpra a integridade do debate, necessário e urgente. Contudo, em tempos nos quais os quilombolas seguem sendo desafiados a resistir, é imperativo que o debate educacional faça sintonia com a desconstrução de desigualdades e contribua para uma sociedade com igualdade e justiça social. É nessa direção que o vídeo educativo pretende caminhar.

Considerações Finais

No decurso desse texto, demonstramos o cenário de invisibilidade da história e memória quilombola nos livros didáticos, disponibilizados pelo Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) ao campus do Ifal em Santana do Ipanema. Do ponto de vista legal, o retrato aqui traçado fere o ordenamento jurídico nacional, sobretudo observando a Lei nº 10.639/2003, as Diretrizes Curriculares para as Relações Étnico-Raciais (2004) e a Educação Escolar Quilombola (2012).

Diante desse contexto, as práticas educativas e o campo curricular carecem de transformações urgentes, no afã de dar visibilidade à história e cultura quilombola. Esse labor exige a disponibilização, ao corpo docente e discente, de materiais curriculares e recursos didáticos que pautem o debate silenciado, uma necessidade ainda mais premente nos Institutos Federais, comprometidos, em sua gênese, com a derrubada de barreiras e de desigualdades. Nesse ínterim, os Mestrados Profissionais em Educação Profissional e Tecnológica e, em especial, o ProfEPT/Ifal têm se dedicado à promoção e à valorização das trajetórias das minorias, subalternizadas e excluídas.

Destarte, ao reconstruir as memórias sociais da comunidade remanescente quilombola do Alto do Tamanduá/AL e torná-las acessíveis ao corpo educacional por meio de um vídeo educativo, temos em vista aproximar o conhecimento produzido na academia do cotidiano escolar, fortalecendo as práticas antirracistas. Assim, tal recurso didático tem por fio condutor a integração das culturas negadas e silenciadas nos livros didáticos ao currículo do Ensino Médio Integrado. Esperamos que o vídeo seja fecundo instrumento de conscientização, conhecimento e combate às formas de preconceito e discriminação, lançadas ainda hoje às populações quilombolas.

Antes de concluir, cumpre-nos lembrar que a luta antirracista implica o envolvimento de toda a sociedade, especialmente dos educadores. Dessa maneira, destacamos a escassez do tratamento da questão quilombola nos livros didáticos, para cobrar das instâncias político-jurídicas a produção de materiais didáticos específicos sobre a temática, em observância à legislação brasileira. Apesar disso, instigamos todos os educadores ao enfrentamento desses limites e ao lançamento de outras estratégias possíveis, que, à revelia do currículo oficial, assegurem a presença de um debate qualificado sobre a história e cultura quilombola no universo formativo do Ensino Médio Integrado.

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