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A industrialização de uma comunidade de imigrantes alemães no sul do Brasil: Santa Cruz do Sul, 1849-1918

La industrialización de una comunidad de inmigrantes alemanes en el sur de Brasil: Santa Cruz do Sul, 1849-1918

Industrialization in a german immigrant community in southern Brazil: Santa Cruz do Sul, 1849-1918

Andrius Estevam Noronha
Universidade Federal do Amap, Brasil

A industrialização de uma comunidade de imigrantes alemães no sul do Brasil: Santa Cruz do Sul, 1849-1918

Fronteiras: Revista de História, vol. 22, núm. 40, pp. 74-94, 2020

Universidade Federal da Grande Dourados

Universidade Federal da Grande Dourados 2020

Recepção: 28 Maio 2020

Aprovação: 20 Agosto 2020

Resumo: Esse trabalho aborda a historiografia sobre o desenvolvimento econômico industrial de uma comunidade de imigrantes alemães no sul do Brasil, mais especificamente o Município de Santa Cruz do Sul, localizado a duzentos quilômetros de Porto Alegre, capital do Estado do Rio Grande do Sul. O recorte temporal dessa análise está situado entre os anos de 1849, ano de fundação da colônia, até 1918, contexto que a comunidade estruturou uma base econômica que permitiu um processo de industrialização local. Para entender como ocorreu esse processo faremos, num primeiro momento, a análise historiográfica do empresariado de origem alemã no Rio Grande do Sul e, num segundo momento, a produção intelectual sobre o desenvolvimento econômico de Santa Cruz do Sul nesse contexto.

Palavras-chave: s: Imigração alemã, Santa Cruz do Sul, História local/regional, Desenvolvimento econômico, Industrialização.

Resumen: Este trabajo aborda la historiografía sobre el desarrollo económico industrial de una comunidad de inmigrantes alemanes en el sur de Brasil, más específicamente el distrito de Santa Cruz do Sul, ubicado a doscientos kilómetros de Porto Alegre, capital del estado de Rio Grande do Sul. El marco temporal de este análisis se ubica entre los años 1849, año de fundación de la colonia, hasta 1918, contexto en el que la comunidad estructuró una base económica que permitió un proceso de industrialización local. Para comprender cómo se desarrolló este proceso, haremos, en un primer momento, el análisis historiográfico del tejido empresarial alemán en Rio Grande do Sul y, en segundo lugar, la producción intelectual sobre el desarrollo económico de Santa Cruz do Sul en este contexto.

Palabras clave: Inmigración alemana, Santa Cruz do Sul, Historia local / regional, Desarrollo económico, Industrialización.

Abstract: This paper aims to approach the historiography of the industrial economic development in a community of German immigrants in Santa Cruz do Sul, a city located in southern Brazil in the State of Rio Grande do Sul, two hundred kilometers far from the State capital, Porto Alegre. The analyzed period is situated from 1849 to 1918, due to the fact that the colony was founded in 1849 and the year of 1918 represents the context in which an economic base had been structured in the community, thus enabling the process of local industrialization. In order to understand how this process succeed, the first part of the paper proposes a historiographical analysis on the German origin businessman in Rio Grande do Sul and, secondly, the study of intellectual production on the economic development of Santa Cruz do Sul within this context.

Keywords: German immigration, Santa Cruz do Sul, Local/regional history, Economic development, Industrialization.

Introdução

As pesquisas sobre imigração europeia nos séculos XIX e XX, durante os anos de 1960, foi um dos assuntos que mais marcaram a historiografia brasileira dedicada a entender comunidades de colonos europeus que contribuíram para o desenvolvimento industrial do Brasil. O interesse pelo estudo foi decorrente da formação de um discurso regional que buscou legitimar o sucesso dessas distintas comunidades dentro do cenário socioeconômico nacional. Nota-se que nas últimas décadas do século XX ocorreu a emergência de uma renovação historiográfica sobre este tema.

As transformações causadas pela internacionalização das empresas, emergência de uma cultura global e a reconfiguração dos discursos regionais se tornaram um dos elementos mais importantes para manter o interesse de diferentes pesquisadores de diversas áreas, pois isso contribuiu significativamente para que outras linhas de pesquisa pudessem emergir na historiografia brasileira e local. Deste modo, por meio destes novos estudos, foi possível compreender o dinamismo de comunidades de imigrantes europeus que mantiveram traços culturais ou identidade de seu país ou região de origem.

A formação de colônias de imigrantes europeus, na maior parte formada por alemães e italianos, estivera inserida no contexto de crise do sistema escravocrata brasileiro e na nova política de ocupação territorial da segunda metade do século XIX. Nesse período, estimulado pelo processo de imigração, inúmeros povoados, vilas e cidades foram criadas e incorporadas na sociedade brasileira por intermédio da Coroa. O presente trabalho analisa um caso específico que se insere na historiografia sobre a temática da imigração alemã do Rio Grande do Sul tendo o desenvolvimento econômico do Município de Santa Cruz do Sul como estudo de caso entre os anos de 1849 até 1918.

A colônia foi constituída em 18471 como parte de um projeto de ocupação empreendido pelo governo provincial do Rio Grande do Sul num contexto de relativa estabilidade nacional e que foi marcado pela consolidação do II Reinado. O panorama internacional, caracterizado por uma série de revoltas que ocorreram na Europa no mesmo período, contribuiu para que houvesse um aumento no fluxo migratório de europeus para a América. Este processo não foi diferente na região que atualmente constitui a Alemanha. O movimento conhecido pela historiografia como “Primavera dos Povos”, dentre outras convulsões sociais, de certa maneira acelerou a vinda de inúmeras famílias teutas para o sul do Brasil2. A soma desses fatores contribuiu para a emergência de colônias alemãs em diversas regiões do Brasil, em especial aquelas que não interessavam à oligarquia agrária, monocultura e escravista.

A instabilidade política que ocorreu no Rio Grande do Sul, sobretudo provocada pela Revolução Farroupilha, interrompeu a imigração iniciada em 1824. A retomada do projeto de ocupação foi posta em prática pelo governo provincial gaúcho no momento em que as tensões foram cessadas graças ao acordo selado entre membros da oligarquia local e o governo do II Reinado. Não foi por acaso que o norte do Município de Rio Pardo foi escolhido pelo governo gaúcho para receber algumas famílias teutas neste contexto. Sabe-se que anos mais tarde a colônia recém-criada cumpriria uma função muito importante do ponto de vista da ocupação espacial, pois esta conectaria o centro do Rio Grande do Sul aos campos de cima da Serra.

A organização do plano de ocupação permanente de colonos teutos foi estabelecida mediante o desmembramento gradual da região norte de Rio Pardo (ou mais conhecida como Colônia de Picada Velha) para que desta forma fosse possível desenvolver a agricultura familiar sem o uso da mão de obra escrava. Para João Bittencourt Menezes (2005), no ano de 1849, esta região recebeu seus primeiros habitantes e posteriormente, com certo aumento populacional, foi elevada a povoado. No ano de 1878, devido ao dinamismo econômico e social do período, foi emancipada como Município e recebeu o nome de Vila de Santa Cruz.

Na década de 1940, por meio de um decreto federal, passou a ser designado como Santa Cruz do Sul, pois havia outros municípios com o mesmo nome. Para essa análise manteremos o nome Santa Cruz do Sul, mesmo que as referências e fontes que abordam o período de 1849 até 1918 indiquem outras denominações para essa comunidade. Observa-se que, de acordo com os relatos descritos nas fontes, Santa Cruz do Sul era considerada pelos memorialistas do período como uma região pouco favorável ao escoamento de sua produção agrícola e industrial, pois estivera localizada a duzentos quilômetros da capital provincial e era desprovida de rio navegável. Esse problema seria solucionado apenas em 1905 com a inauguração da linha férrea que ligaria a cidade até o ramal do Couto, localizado em Rio Pardo, permitindo acesso à rota que conectava Porto Alegre até Uruguaiana.

Santa Cruz do Sul se consolidou como um dos polos da economia gaúcha graças ao sucesso da produção fumageira que foi responsável pela geração de riqueza e de certa maneira permitiu a ascensão de um número considerável de famílias. Destacamos que nossa abordagem se restringirá até o ano de 1918 devido a este fato ser reconhecido como um marco simbólico tanto pela literatura acadêmica quanto pelos memorialistas locais que entendiam este acontecimento como um prenúncio do dinamismo empresarial da cidade.

Nesse sentido, o Município contribuiu para que fosse estruturado duas importantes indústrias de produção de cigarros que alavancariam a economia local: a instalação da subsidiária da Britsh American Tobacco Company, ocorrida no ano anterior, e a formação da Companhia de Fumos Santa Cruz S/A. (NORONHA, 2012).

A problemática que procuramos abordar é entender quais as tendências de produção acadêmica sobre o desenvolvimento econômico de comunidades de imigrantes no sul do Brasil e como que este processo influenciou na construção de uma narrativa acadêmica sobre as colônias alemãs no século XIX. O desenvolvimento econômico de Santa Cruz do Sul foi objeto de estudo em diversas pesquisas nas áreas de Ciências Sociais e História. Vale destacar que a cidade possui um polo universitário, a Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), instituição que desenvolve diversas pesquisas sobre o tema, em especial no programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Regional que elenca estudos sobre a dinâmica econômica local em dissertações e teses.

Dentro dessa perspectiva, esse trabalho será dividido em duas partes. A primeira apresenta a produção acadêmica pertinente ao desenvolvimento econômico das comunidades de imigrantes alemães no Rio Grande do Sul com o intuito de analisar como os pesquisadores entendem a dinâmica empresarial oriunda da agricultura familiar. A segunda analisará como essa narrativa acadêmica orientou o estudo de caso sobre o desenvolvimento econômico de Santa Cruz do Sul entre os anos de 1849 até 1918.

O empresariado das regiões de colonização alemã no Rio Grande do Sul: análise de sua origem até 1930

As pesquisas realizadas sobre as comunidades de imigrantes europeus que emergiram nos séculos XIX e XX apontam que o empresariado gaúcho teuto-brasileiro optou por deslocar seus investimentos do setor varejista/comercial para o industrial. Nota-se que esse processo foi condicionado por um padrão de ação na medida em que seus integrantes obtinham melhores condições de captar as novas solicitações do mercado3. Celso Furtado (1980) destaca que, nesse contexto, esse emergente segmento orientava seus investimentos no sentido de atender às demandas que ofereciam maior rentabilidade e segurança. Assim, os mercados locais e regionais sempre estiveram entre as prioridades dessa elite urbana que se estruturou na metade norte do Rio Grande do Sul. Vale destacar que a diversificação de investimentos, provenientes de sua maior flexibilidade econômica, foi o que lhes teria propiciado maior acúmulo de riquezas.

Para Limeira Tejo (1937), a formação da indústria gaúcha foi o resultado de um processo gradual de transformação do modo de produção artesanal-fabril para o mecânico-industrial. Para tanto, foi necessário que ocorresse uma vertiginosa acumulação de capitais a serem investidos na indústria nascente, pois “dificilmente se aponta no Rio Grande do Sul uma indústria que tenha surgido por ‘aplicação de capitais’. Quase toda exploração industrial tem uma história, é um fenômeno de evolução. Quase nunca é um acontecimento isolado na atual fisionomia econômica da região” (TEJO, 1937, p. 19-20).

Para o autor, o que contribuiu para o sucesso desses imigrantes foi a tenacidade, o afinco, o espírito de privação e a poupança, numa analogia próxima do caso do desenvolvimento japonês. É desse esforço individual que resulta o sucesso, e não da necessidade de investimento de capitais, pois “[...] a exploração industrial tem uma história, é um fenômeno da evolução” (TEJO, 1937, p. 22).

A posição defendida por Limeira Tejo é contestada por diversos autores, tais como Jean Roche (1969), Paul Singer (1968), Sandra Pesavento (1986, 1985 e 1978), Eugênio Lagemann (1985) entre outros. Roche, por exemplo, afirma que o artesanato desenvolvido pelos imigrantes alemães não gerou a indústria. Esse processo só ocorreu quando, em alguns casos, a pequena oficina organizada pela família evoluiu até tomar-se uma fábrica.

Para Pesavento (1986), a defesa da evolução da indústria via artesanato é a reprodução do discurso burguês de “ascensão social através da capacidade de poupança e do espírito de privação”. A autora afirma “que todo o empresário fora, originariamente, um colono imigrante e um artesão, a evolução linear do artesanato à indústria representava, no discurso burguês, a mais cabal demonstração de sua capacidade inovadora e do seu amor ao trabalho. Justificava-se, com isso, o sucesso e a riqueza, apresentados como merecidos e justos” (PESAVENTO, 1986, p. 38).

Lagemann também se posiciona criticamente sobre essa tendência voltada para a “[...] interpretação heróica, que faz do colono bem sucedido econômica ou politicamente um verdadeiro ‘self made man’ [...] chega-se a colocar o imigrante como o civilizador” (LAGEMANN, 1985, p. 118). Pode-se argumentar que no início da industrialização, ocorreram alguns casos de empresas que se originaram por meio do artesanato. Nesse caso, não podemos tomar essas exceções como uma regra universal. Jean Roche (1969) destaca como exemplo desse processo o setor de fabricação de artigos de couro, em que ocorreu uma coexistência entre a fábrica e o artesanato na maioria dos casos analisados.

Sandra Pesavento (1985, 1986) se distancia em relação aos trabalhos dos demais autores na medida em que transcende a polêmica sobre a origem artesanal da indústria, incluindo em seus estudos outros setores econômicos com potencial de investimento na indústria. A autora destaca que o capital industrial formado nas zonas de colonização alemã e italiana da metade norte teriam se originado de cinco formas.

A primeira foi formada por meio do capital comercial, em que a indústria nasceria pronta, isto é, o comerciante montaria uma empresa fabril e trabalharia concomitantemente nos dois ramos. No segundo caso, a indústria emergiria da “evolução do artesanato para a empresa industrial, situação está em que teria também ocorrido, paralelamente à atividade artesanal, o desenvolvimento de atividades comerciais, o que, de certa forma, teria proporcionado acumulação de capital capaz de ser aplicado na atividade produtiva” (PESAVENTO, 1986, p. 15), tornando-se, assim, responsável pela mudança qualitativa ocorrida em alguns casos.

Uma terceira forma, diferente da anterior, seria a de uma pequena manufatura que, associada ao capital comercial, viria a se expandir em termos de capital, força motriz, força de trabalho e linha de produção; a quarta forma se daria por intermédio da participação do capital bancário na formação de empresas industriais; por último, tinha-se o “burguês imigrante”, isto é, aquele que trouxe consigo, de sua terra de origem, capital e experiência profissional na gestão de alguma empresa.

Ani Maria Schiphorst Hass (1971) destaca que em 1824 o processo de imigração originou novas condições econômicas e alavancou o desenvolvimento de uma economia mais complexa e industrial no Rio Grande do Sul. Essas características estavam em curso graças à corrente que fundou as colônias alemãs de São Leopoldo (1824) e Santa Cruz do Sul (1849). A autora problematiza a dinâmica econômica das colônias alemãs analisando, comparativamente, alguns elementos identificados por Paul Singer (1968), que mensurou o processo de desenvolvimento urbano tendo Porto Alegre como estudo de caso. Para Singer, o processo de formação das sociedades industriais que emergiram da zona colonial esteve dividido em três fases.

A primeira foi caracterizada pelo desmatamento associado à agricultura de subsistência, pois as próprias condições estruturais não permitiam ao colono uma produção para o mercado capitalista. As colônias alemãs não conseguiam se integrar ao mercado externo, pois o imigrante alemão não possuía recursos capazes de iniciar uma produção monocultora de larga escala, e, além disso, as terras que foram deixadas para esses imigrantes eram, na maioria das vezes, impróprias para a monocultura. O maior obstáculo enfrentado por esse novo segmento foi a carência de um mercado interno nacional capaz de integrar essa nova população. Diante dessa adversidade, essas famílias passariam a se dedicar a uma agricultura diversificada com o objetivo de atender o mercado local e progressivamente o regional na medida em que ganhavam robustez. O resultado desse processo foi a formação de uma emergente indústria doméstica assentada em ferragens, sapataria, couro, alimentos, bebidas, fumo, vestuário, entre outros.

A segunda fase foi caracterizada pela consolidação da agricultura familiar, que conseguiu potencializar a exportação de excedentes produzidos nas colônias. Nessa fase, conseguiram superar a condição de extrema pobreza, estruturando vilas e um comércio rural no período entre 1840 e 1870. A produção mais qualificada de gêneros agrícolas se destinava ao mercado local, que foi, progressivamente, ampliado para o âmbito regional. A base desse dinamismo está ligada ao sucesso alcançado pelo artesanato rural aquecido pelas demandas originadas pela Revolução Farroupilha, que expandiu o intercâmbio comercial entre as regiões de colonização alemã de São Leopoldo e a capital da província, Porto Alegre.

A maioria dos produtos eram destinados ao mercado interno gaúcho, porém na medida em que os agentes econômicos percebiam que o crescimento da produção agrícola e industrial gerariam excedentes, começaram a direcionar seus negócios para o mercado nacional. O envolvimento do Império brasileiro em conflitos internacionais (Guerra de Rosas e Guerra do Paraguai) de certa maneira, alavancou a expansão do mercado nacional de artesanato semi-industrial das colônias de imigrantes alemães.

A terceira fase se caracterizou pela consolidação de um comércio dinâmico que foi abastecido por uma agricultura especializada. O incremento destas atividades permitiu a formação dos primeiros núcleos industriais de bens duráveis. Esse processo ganhou força na virada do século, quando as regiões de colonização possuíam capacidade de estruturar bancos e indústrias para, então, consolidar centros urbanos mais robustos.

Jean Roche (1969) destaca a consolidação de São Leopoldo com o beneficiamento de banha e Santa Cruz do Sul com o beneficiamento do fumo. A mercantilização da produção agrícola dessas duas regiões contribuiu para potencializar a monetarização de alguns colonos mais ousados, que viriam a investir na indústria local. Singer aponta que como consequência desse processo, ocorreu uma mudança no fluxo de mercado no Rio Grande do Sul. A principal rota de exportação antes era centralizada em Pelotas com o charque, posteriormente, foi conduzida para Porto Alegre com a produção de excedentes agrícolas oriundos da zona colonial. A capital se tornou evidentemente um polo exportador importante na medida em que sua posição geográfica favorecia significativamente o escoamento da produção regional4.

O processo de integração econômica dos imigrantes alemães foi possível graças ao sucesso da agricultura familiar condicionada ao crescimento artesanal/industrial. Ani Hass (1971) destaca que os colonos não possuíam recursos nem braços suficientes para investir na monocultura. A autora destaca que o artesanato foi importante para a consolidação de uma rede de negociação empresarial de maior envergadura no Rio Grande do Sul em comparação com outras regiões do país:

A indústria manual em São Paulo, no distrito federal, na Baía, em Pernambuco, sempre foi – à parte, certamente, a fase oniprodutivista do regime colonial – o que ainda é hoje. Isto é: a princípio, simples atividade acessória e, depois, mero trabalho de habilidosos. Já no Rio Grande do Sul se poderá constatar que essa indústria manual, que apresenta atualmente, como nas outras partes do país, um caráter de habilidade, é um vestígio de atividades manufatureiras mais intensas, visando o abastecimento ordinário da região (HASS, 1971, p. 96)

Hass argumenta que o artesanato foi peça fundamental para o desenvolvimento industrial. No entanto, outros estudiosos argumentam que a emergência das atividades fabris se deve à própria dinâmica do mercado local, pois permitiu uma elevação da renda e a evolução do espaço rural para o urbano. Nesse sentido, “a atividade familiar, semi-artesanal no início, permitiu, mais tarde, oficinas e ateliers de ótima qualidade técnica, mas erigiu-se como um obstáculo para a construção da grande indústria” (ibidem).

Ani Hass explica que o empresariado se originou de duas práticas profissionais: a do artesão e a do comerciante. O primeiro conseguiu superar os entraves da concorrência estrangeira, formando uma pequena indústria com recursos provenientes da própria poupança, enquanto que o segundo apresentou características diferentes, pois a maior parte das iniciativas industriais de vulto no século XX proveio deste grupo, que foi objeto de estudo em Paul Singer:

O relato das realizações das principais figuras da dinastia Trein, Mentz e Renner mostra o papel destacado que o grande comércio alemão desempenha no desenvolvimento de Porto Alegre. A evolução da cidade, na segunda metade do século passado e nas primeiras décadas do atual, se acha dominada pelas conseqüências da colonização alemã, não somente devido ao intercâmbio comercial com as colônias, mas porque o capital que nelas se acumula acaba sendo, em boa parte, investido em indústrias e em empreendimentos comerciais de maior fôlego, cuja sede só poderia ser Porto Alegre. (SINGER, 1968, p. 53)

Hass cita o exemplo ilustrativo do industriário Antônio Jacob Renner, um dos principais líderes empresariais do Rio Grande do Sul, que atuou como integrante da elite econômica entre o final do século XIX e o início do século XX graças ao sucesso que lhe foi proporcionado pelo comércio fundado em parceria com a família. Jacob iniciou sua atividade empresarial em 1847 com o sogro, Franz Trein, numa casa comercial na cidade de São Leopoldo, e mais tarde conseguiu abrir uma tecelagem na cidade de São Sebastião do Caí. Desde 1916 o empresário era representado em Porto Alegre com uma filial e no mesmo ano, com o aumento da demanda de tecidos, decidiu transferir a sede da empresa para a capital estadual. Desta forma, essa empresa familiar ampliou sua capacidade de produção. Observa-se que devido a este fato, o líder empresarial gaúcho se tornou um dos maiores negociantes do ramo têxtil do país. As empresas de Jacob Renner exportavam para Europa e Estados Unidos.

Ani Hass destaca que o processo de formação desse típico comerciante no interior do Rio Grande do Sul apresentou duas formas: o vendista que atuaria diretamente na agricultura e o cacheiro viajante que trabalharia na importação e exportação de produtos agrícolas. O vendista/agricultor é o tipo de comerciante que tem como característica peculiar atuar economicamente, na maioria dos casos, em cruzada de picadas (estrada aberta no meio do mato) e ser proprietário de um lote de terra para cultivar com a família. Esse grupo deveria operar por meio do “escambo”, pois este trocaria os produtos agropecuários dos colonos por produtos manufaturados que comprava na vila ou numa cidade próxima.

Alguns vendistas transformariam seu pequeno estabelecimento comercial como fonte principal de renda e manteriam a agricultura familiar como fonte de renda complementar. Na medida em que se ampliava o mercado local, certos comerciantes deixavam a agricultura familiar e passavam a negociar diretamente com agricultores e caixeiros-viajantes. O objetivo principal destes senhores era transferir seus negócios para a vila ou cidade. Os vendistas que possuiriam a agricultura como fonte principal de renda optariam por manter o estabelecimento comercial como complemento e dificilmente entrariam no sistema econômico desenvolvido no espaço urbano.

O cacheiro viajante era constituído por um segmento que residia nas cidades ou vilas; estas pessoas recebiam os produtos agropecuários dos vendistas em troca de produtos manufaturados. No momento em que a economia se monetarizou, o comércio teve uma sensível expansão, pois as trocas foram simplificadas. É plausível supor que a maioria dos comerciantes que iniciaram o processo de industrialização estivessem ligados a esse último grupo – comércio exportador e importador – pois esses, em relação aos primeiros, possuíam maiores recursos financeiros e estavam localizados nos centros urbanos. A análise bibliográfica sobre a formação de Santa Cruz do Sul permitirá compreender um caso específico dessa dinâmica sobre a imigração alemã no Rio Grande do Sul.

A consolidação da agricultura familiar e a formação do comércio urbano (Vila de São João de Santa Cruz, 1848-1918)

O primeiro estudo acadêmico sobre a consolidação da agricultura familiar e a formação do desenvolvimento capitalista em Santa Cruz do Sul foi produzido pela socióloga Lilian Montali (1979) que realizou uma abordagem semelhante ao de Florestan Fernandes quando este escreveu sobre a Revolução Burguesa no Brasil. Para Montali, o contexto de 1848 até 1918 esteve dividido em três períodos e foi marcado pelo processo de colonização dos primeiros lotes destinados às famílias que trabalhariam em atividades agrícolas no contexto da imigração. A consolidação de Santa Cruz foi encerrado com a formação do espaço urbano, mediante o crescimento do comércio, sistema financeiro e industrial, a partir de 1918.

O primeiro período de ocupação de Santa Cruz pelos imigrantes alemães foi marcado pelo processo de instalação da Colônia, entre 1849 até 1859. Esta periodização foi proposta por Montali por meio do critério de nível de produtividade local e muitos pesquisadores mantém em suas teses esse recorte temporal. Segundo a autora, “as terras ocupadas pela colônia de Santa Cruz do Sul foram aquelas cedidas pelo governo imperial através da lei de 1848 de incentivo à imigração estrangeira” (MONTALI, 1979, p. 20).

Destaca-se que a maioria dos pesquisadores que abordam sobre a formação da cidade apoiam-se em pesquisas realizadas por memorialistas locais. Um dos mais citados nesses estudos foi o jurista João Bittencourt de Menezes (2005). Sua obra, originalmente publicada na década de 1920, foi reimpressa e revisada pela universidade local, servindo como excelente fonte para uma análise da evolução da cidade. Reúne diversas informações estatísticas sobre demografia, contas públicas, clubes, vida religiosa e economia. O autor destaca que a sede do município de Rio Pardo tinha sido elevada, em 1846, à condição de cidade e a Câmara local desejava estabelecer uma comunicação para os chamados “Campos de Cima da Serra”, na região de Soledade, então distrito de Cruz Alta, por meio de uma estrada ou picada, para encurtar o caminho e atrair o comércio daquela região.

Vale destacar que a cidade de Rio Pardo foi um importante entreposto comercial e atendeu uma vasta área da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul, compreendida entre o centro, a campanha, o oeste e parte da serra a noroeste. A abertura do caminho da Picada Santa Cruz, ou Picada Velha, mais tarde denominada Linha Santa Cruz, foi efetuada por Abel Corrêa da Câmara, o que deu origem à denominação “Picada do Abel”, como o lugar também ficaria conhecido. Nessa época, a Província foi governada pelo Tenente-General Francisco José de Souza Soares de Andréa, Barão de Caçapava, “que autorizou, em 2 de dezembro de 1849, a formação da Colônia de Santa Cruz em terras do distrito rio-pardense da Serra do Botucaraí, entre a margem esquerda do Rio Pardo e o arroio Taquari Mirim”. (MENEZES, 2005, p. 27)

Outra questão importante a ser observada na análise de Montali é o fato de que a autora destaca alguns elementos de pesquisa de Jean Roche (1969) e os entendem como discussões semelhantes ao que ela propôs em seu estudo. Uma das teses mais recorrentes realizadas por Roche em suas investigações e igualmente abordadas por Montali foi um estudo comparativo sobre a diferença entre o perfil dos imigrantes que inauguraram São Leopoldo, em 1824, e o do grupo que fundou Santa Cruz, conhecida naquele tempo (1849) como Picada Velha.

Um dos pontos que merece consideração é a diversidade profissional dos integrantes que migraram para a colônia de Santa Cruz. Neste caso, “apesar de a maioria dos imigrantes serem agricultores e ocuparem-se da agricultura, sabe-se que muitos eram artesãos, como por exemplo, um grupo de 71 chefes de família chegados à colônia de Santa Cruz em 1853, entre os quais constavam 25 artesãos e 46 agricultores” (MONTALI, 1979, p. 31). Outra referência importante para a análise do desenvolvimento econômico e político da vila é a pesquisa de Silvana Krause (2002), pois, além de reforçar dados apresentados por Montali sobre a importância do nível de formação profissional e escolar desses imigrantes, analisou a sua filiação religiosa5.

Tanto Krause (2002) quanto Montali (1979) reforçam que a população local cresceu rapidamente nessa fase inicial. Os dados apresentados por essas autoras indicam o seguinte painel: em 1849 havia 12 habitantes, em 1852 esse número saltou para 254, e em 1853 ocorreu um incremento de 692 pessoas. Essa tendência foi mantida durante todo o primeiro período (1849-1859), que terminou com a comunidade constituída por uma população estimada em 2.723 habitantes, segundo os relatórios dos presidentes da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul6.

No segundo período, que se estende de 1860 até 1881, há um predomínio de atividades voltadas para o comércio e o artesanato. Para Montali, essas duas atividades passam à condição de “linha de frente” da economia na emergente colônia e estruturam o fortalecimento do processo de mercantilização das atividades voltadas para a agricultura familiar. Os colonos da região produziam excedentes agrícolas com capacidade de acumulação rentável, num quadro bem semelhante ao que ocorreu nas outras regiões de colonização do Rio Grande do Sul.

No caso específico de Santa Cruz do Sul, o fumo em folha passou a ser produzido em larga escala para a comercialização e fomentou a entrada de capitais industriais na localidade. Montali (1979, 33) destaca que “entre 1859 e 1881 verificou-se um salto no volume da produção do fumo, que passa, de 14 toneladas em 1859, para 97 toneladas em 1862, e para 1.552 toneladas em 1881. O fumo, além de ser o principal produto para a exportação, tinha 95% de sua safra exportada para outras localidades durante o período de 1862 a 1881.”

Nesse contexto, assistimos à integração do mercado capitalista com redes comerciais, ligando Santa Cruz do Sul com outras localidades do Rio Grande do Sul e tendo Rio Pardo como ponto de partida. Nessa mesma conjuntura, a comunidade passou a buscar sua emancipação política. Criaram-se instituições que possibilitavam a atuação de lideranças locais capazes de representar a localidade em outras esferas governamentais. Merece destaque a primeira Câmara Municipal, instalada em 1878, no qual o presidente teria poderes políticos equivalentes ao de um intendente.

Para Jorge Luiz da Cunha (1991), o cultivo do fumo estivera inserido no contexto da primeira etapa da história econômica local e, em meados de 1860, foi o principal produto produzido pelas famílias de agricultores. O autor defende a tese, reforçada por outros pesquisadores, de que a escolha do fumo como principal mercadoria se devia à facilidade de transportá-lo através de carroças puxadas por bois ou cavalos até Rio Pardo, ponto de escoamento para a capital. Além disso, o fumo era rentável para uma estrutura fundiária de pequena extensão. De acordo com Vogt (1997), o fumo de Santa Cruz do Sul foi se firmando no mercado interno e externo, fornecendo as bases para a modernização econômica, social e política da comunidade.

Menezes (2005) descreve o forte crescimento populacional registrado no ano de 1881: próximo de 18 mil habitantes. A produção agrícola passou a ser fonte de movimento comercial e de acumulação de capital na emergente vila. Fernandes (1976) destaca que o processo de desenvolvimento das regiões de colonização assentadas sobre a pequena propriedade familiar rompia com uma série de elementos hegemônicos na formação da sociedade brasileira. O imigrante rompia, portanto, com a tradição senhorial em todas as fases de sua carreira. “Num sentido literal, o trabalho próprio – e não o trabalho alheio, sob a forma de apropriação do trabalho escravo – seria fonte de sua subsistência e de eventual riqueza ou prosperidade” (FERNANDES, 1976, p. 130)

No terceiro período, compreendido entre os anos de 1882 e 1917, Santa Cruz do Sul gerou condições sólidas para a formação de uma média burguesia local. Alguns pequenos agricultores ascenderam, passando a ter condições de formar pequenos estabelecimentos comerciais e industriais. Em 1904, contando com a cooperação mútua, fundaram o primeiro estabelecimento financeiro local, a Caixa de Crédito Santa-Cruzense. Nesse sentido, emerge-se as bases para a criação de uma vida urbana e de uma comunidade mais complexa, assentadas nas transformações que ocorriam na sociedade brasileira nesse mesmo período7. Os empresários optaram por uma produção manufatureira industrial com o objetivo de oferecer produtos mais sofisticados, criando, assim, as condições prévias para o desenvolvimento do capitalismo na cidade.

Krause (2002) identificou no jornal local, Kolonie, de 21 de maio de 1882, uma matéria sobre o desenvolvimento da indústria de Santa Cruz do Sul. Segundo a autora, a vila contava com duas fábricas de fumo (Krische e Jeske); três fábricas de telhas de tijolos (Eick, Dahlem, Heinrich); três fundições (Schreiner, Lau e filhos, Binz); uma fábrica de tachos de cobre e latão (Baumhardt); três fábricas de engenhos de serrarias (Kulheis, Meyer, Textor); uma fábrica de cal (Kolzer) e uma fábrica de formas para sapatos (Kolberg). A autora abordou a evolução empresarial de quatro estabelecimentos que possuíam fontes preservadas e tiveram participação na Exposição Brasileiro-Alemã de Porto Alegre realizada em 1881. Esses quatro empreendimentos permitem observar o caráter artesanal do empresariado local. Devemos ressaltar que Krause não tinha informações sobre o início nem o desfecho dessas empresas que cita como exemplos.

A primeira empresa foi a Casa Comercial Koelzer, fundada por João Pedro Koelzer. O empresário se dedicou à fabricação e comercialização de erva-mate para o estado. Do ponto de vista estrutural, sua empresa possuía uma máquina a vapor com força de 12 cavalos. A segunda foi a Lund – Fábrica de chapéus, fundada por Carlos Lund, e tinha a capacidade de produzir até 120 dúzias de chapéus por mês, exportava para todo o estado e contava com 10 operários. Sua família conseguiu acumular recursos suficientes para comprar o segundo veículo da cidade, em 1901. A terceira empresa foi Kolberg – cadeiras e fôrmas para sapatos, fundada por José Kolberg; trabalhava com sete operários e exportava esses produtos para todo o estado. A quarta foi a F. Ernesto Wunderlich, que possuía um engenho no distrito de Vila Thereza, localidade rural de Santa Cruz do Sul, e tinha capacidade de descascar cerca de 70 sacas de arroz por dia.

Mas esses exemplos citados anteriormente estavam inseridos na emergência de um mercado interno local, pois partimos da suposição de que, se ele chegou a existir, é porque havia demanda e a lógica econômica desse contexto funcionava nessa perspectiva. Destaca-se que haviam outros pequenos estabelecimentos fabris na cidade de Santa Cruz do Sul, porém nota-se que estes, embora um pouco mais avançados do que um artesanato agroindustrial, não chegava a se caracterizar como indústrias. Devemos ressaltar que havia divergências entre os próprios registros da Intendência Municipal, pois os documentos indicavam que alguns empreendimentos classificados como industriais eram na verdade agroindustriais ou artesanais.

Montali destaca que os pequenos estabelecimentos industriais eram compostos, na maioria dos casos, por empresas dedicadas ao ramo de alimentos e com forte predomínio familiar. Assim, os exemplos citados acima devem ser ressalvados, visto que muitos pequenos negócios continuaram a surgir e a falir por várias questões durante todo o século XX. O escoamento da produção foi peça estratégica para o crescimento dessas empresas, pois a maioria dos produtos eram transportados de carroça até Rio Pardo, o que dificultava o aumento das vendas.

O gargalo dos transportes foi resolvido em 1905 com a inauguração da via férrea Santa Cruz – Rio Pardo (estação do Couto). Esse fato deu impulso à integração da comunidade com a capital estadual, Porto Alegre, possibilitando o aumento da circulação de mercadorias e de pessoas. A estação férrea abriu caminho para a transformação social e econômica da comunidade, pois desde 1849, quando chegaram os primeiros imigrantes, falava-se sobre as dificuldades no escoamento da produção. A bibliografia sobre a história econômica local8 registra os relatos de vários setores da comunidade quanto às dificuldades de acesso à colônia, tanto no caminho até Rio Pardo quanto no complicado trajeto até Porto Alegre.

As lideranças políticas entendiam que o processo de integração com o mercado estadual dependia de uma via moderna para o escoamento da produção. Assim, em 1882, com uma elite política formada três anos antes, teve início uma sistemática mobilização para a construção do empreendimento, que foi autorizado em 1904. Juntamente com a inauguração da estrada, em 1905, o presidente estadual na época, Dr. Borges de Medeiros, aproveitou a ocasião e elevou Santa Cruz do Sul à categoria de cidade.

O presidente do Estado do Rio Grande do Sul considerando a prosperidade comercial e industrial do município de Santa Cruz, cujo desenvolvimento é notório, considerando contar o mesmo município uma população superior a 26.000 habitantes, resolve, no uso da atribuição que lhe confere o artigo 7º da Constituição, decretar:

Artigo 1º - É elevada à categoria de cidade a Vila de Santa Cruz;

Artigo 2º - Revogam-se as disposições em contrário.

Palácio do Governo, em Santa Cruz, 19 de novembro de 1905.

A. Borges de Medeiros9.

Borges de Medeiros, no contexto da República, não foi o único governante estadual a incentivar a emancipação das colônias. Paulo Pinheiro Machado (1999) afirma que a autonomia local desses núcleos tinha o objetivo de reduzir as despesas da imigração. Essa estratégia era adotada desde o contexto do Império. O governo central e os provinciais auxiliavam o processo de assentamento dos colonos que contavam com uma pequena burocracia local constituída por diretores e agrimensores indicados. A formação do poder público local, como a Câmara de Santa Cruz, a partir de 1878, contribuiu para a formulação de projetos de melhoria da infraestrutura local de transporte e comunicação.

Depois da estrada de ferro, ocorreram importantes transformações estruturais na emergente vila/cidade como o primeiro centro telefônico, a instalação do serviço de energia elétrica e da rede hidráulica para o abastecimento do perímetro urbano. Em relação ao sistema de telefonia, Menezes (2005) destaca que foi inaugurado em 1905 entre a cidade de Santa Cruz (prédio da Intendência) e o distrito de Vila Thereza (prédio da Subintendência).

Nesse sentido, para obter certas vantagens no meio dos negócios, os empresários pressionaram o poder público a inserir em Santa Cruz as linhas de rede de telefonia. A novidade tecnológica foi inserida nas empresas para atender ao objetivo de estabelecer uma comunicação mais eficiente entre a comunidade com Porto Alegre, Rio Pardo e demais localidades do interior e contribuir com o crescimento progressivo de vendas neste novo cenário.

De acordo com Menezes (2005), o serviço de energia elétrica foi inaugurado em 1906 com a instalação da “Usina de Luz Electrica”, propriedade do empresário Henrique Melchior, movida a vapor. Ela foi estatizada, anos mais tarde, em 1911, pela Intendência Municipal por meio de empréstimos da Caixa de Crédito. A Usina Elétrica Municipal foi administrada pelo município até o ano de 1935, quando a demanda proporcionada pela indústria local forçou o poder público a investir numa nova matriz energética.

Menezes registra que o abastecimento de água foi efetuado a partir de 1908, por meio da construção de um dos maiores reservatórios desde a formação da vila. No entanto, em 1925, o sistema entraria novamente em colapso, pois o acelerado processo de urbanização e a falta de planejamento do poder público contribuiu para estender o problema por décadas. Ele foi resolvido em meados de 1960, quando o governo estadual assumiu o sistema de distribuição através da estatal Companhia Rio-Grandense de Abastecimento (Corsan).

O fortalecimento da infraestrutura de transporte, comunicação e abastecimento contribuiu para um salto extraordinário nas exportações da vila dando condições para a ascensão social de pequenos agricultores e artesãos à condição de médios empresários aspirantes a elite local.

Os estudos de Jean Roche (1969) reforçam a importância da ferrovia, pois ele compara os dados estatísticos que permitem visualizar o impacto causado por ela nas exportações da cidade no ano anterior e posterior à inauguração da estrada de ferro. Segundo o autor, praticamente todos os produtos dobraram suas vendas entre 1904-1905 (a banha 133%, o feijão 165%, o fumo 271% e a batata 412%). Essa prosperidade permitiu criar condições sólidas para o fortalecimento e emergência de uma burguesia comercial que fomentaria investimentos mais ousados no setor industrial a partir da I Guerra Mundial.

Para Krause (1991), os comerciantes formaram o principal grupo de poder político de Santa Cruz do Sul, pois nessa fase pré-industrial o segmento detinha o controle das principais vias de acesso aos mercados do fumo. Os estudos sobre o perfil da elite política local no contexto da República Velha, iniciados por Flávio Madureira Heinz (2000), reforçam a importância do comerciante na compra e venda de mercadorias. Isso colocava o segmento em situação de vantagem na disputa política na cidade. Podemos destacar que esse poder não surgiu por acaso, pois o caixeiro-viajante desempenhava o papel de banqueiro e monopolizava a informação referente ao preço do tabaco e aos meios de escoamento da produção. Nas palavras de Vogt: “Era ele o elemento de prestígio e poder político, era quem orientava os agricultores sobre o que e como plantar, sendo responsável pela introdução de novas técnicas produtivas na sua área de influência […]” (VOGT, 1997, p. 94)

A estrutura industrial e comercial que emergiu na cidade de Santa Cruz do Sul consolidou uma vida urbana e dinamizou um crescimento populacional em bases mais sólidas. Essa “guinada urbanista” pela qual a cidade estava passando possibilitou o surgimento de novas áreas profissionais para além da agricultura e comércio. A formação do próprio jornal Kolonie – editado em língua alemã –permitiu visualizar essas transformações. A imprensa local no contexto de formação da Colônia, contava com inúmeros periódicos: “A Cruzada”, “Fortschritt”, “Santa Cruzer Anzeiger”, “Luneta”, “O Gaúcho” e “Kolonie”.10

O principal foi o Kolonie, fundado em 1881, pelo empresário Ernesto Riedl, imigrante luterano que veio para Santa Cruz com capital para investimento. Seu jornal era editado em alemão gótico; contém reportagens sobre a biografia de empresários e políticos que emergiam na cidade, balanços empresariais e algumas notícias em língua portuguesa. Teve que ser interrompido, em 1918, por conta da entrada do Brasil na I Guerra Mundial contra o Império Alemão. Foi reaberto, após o conflito, e durou até 1942, quando novamente o Brasil entrou na II Guerra Mundial contra a Alemanha, sendo substituído pelo jornal Gazeta de Santa Cruz, todo em português, no final do conflito. Kolonie e Gazeta foram, ao longo do século XX, os principais veículos de comunicação impressos que foram organizado e sustentados pelos integrantes da elite local.

Marco André Cadoná (2002) destaca que foi nesse contexto que surgiu a preocupação da burguesia local, ligada aos setores emergentes da indústria e comércio, de criar uma entidade de representação política e civil que serviria também para barganhar a formulação e implementação de políticas públicas com o objetivo de solucionar gargalos. Além disso, teria a função de resolver demandas junto aos governos municipal, estadual e federal em parceria com as entidades de classe empresariais do Rio Grande do Sul sediadas em Porto Alegre, como a Federação da Indústria do Estado do Rio Grande do Sul e a Federação do Comércio do Rio Grande do Sul. Esse processo marcaria o final da primeira etapa, pois a cidade passou a ser palco principal de atuação de uma elite local que emergiu nesse contexto.

Considerações finais

Esse trabalho procurou analisar a historiografia do desenvolvimento econômico de uma comunidade de imigrantes alemães do sul do Brasil tendo Santa Cruz do Sul como estudo de caso entre os anos de 1849 até 1918. O contexto foi marcado pela implantação da colônia após o término da Revolta Farroupilha associado a um projeto nacional e regional de ocupação promovida pelos governos provincial e imperial desde a independência brasileira. As zonas de colonização que emergiram no século XIX forjaram um sistema de desenvolvimento econômico distinto do modelo monocultor e escravocrata que ocorria desde o século XVI no Brasil. Os imigrantes alemães que formaram Santa Cruz do Sul se especializaram no setor fumageiro e alavancaram uma economia com característica urbana apoiada no comércio, finanças e indústria.

Uma característica importante para entender o processo de desenvolvimento de comunidades oriundas da imigração europeia do século XIX foi seu relativo isolamento geográfico e a fraca integração nacional. Esse processo fez parte do projeto de imigração promovida pelo Império, que objetivava ocupar áreas que não interessavam à oligarquia escravista. Uma vez instaladas, as famílias não recebiam quaisquer apoio governamental, além disso, o reconhecimento da cidadania não foi automático como nos Estados Unidos ou na Argentina. No caso de Santa Cruz do Sul a situação era mais grave, pois a colônia era desprovida de rio navegável e estradas de ferro até o início do século XX. No entanto, o que seria um gargalo ao seu desenvolvimento, estimulou os imigrantes a investirem no cultivo e no comércio da folha de fumo, pois este era considerado como um produto leve e rentável, podendo ser transportado por carroças até Rio Pardo e de lá seguir por estrada de ferro ou rio até Porto Alegre.

Embora o fumo fosse o principal produto, a dinâmica da agricultura familiar criou um mercado interno diversificado, pois sua produção induziu a formação de uma pequena agroindústria que demandava utensílios de ferro que passaram a ser produzidos por pequenos e médios empresários do ramo metalúrgico. O crescimento da demanda nacional e internacional de cigarros, ao longo do século XX, fez os pequenos agricultores aperfeiçoar as técnicas de cultivo introduzindo novas plantas. A inauguração do primeiro banco, Caixa Cooperativa de Crédito Santacruzense, em 1904, e a estrada de ferro, em 1905, criaram condições para a expansão urbana.

As transformações contribuiriam para integrar Santa Cruz do Sul no modelo de Substituição de Importações que prevaleceu na economia dos países da América Latina no contexto da I Guerra. Vale destacar que a partir de 1917 o chamado circuito fumageiro local atraiu investimentos estrangeiros através da instalação da subsidiária anglo-americana British American Tobacco e, no ano seguinte, a formação, por empresários médios locais, da Companhia de Fumos Santa Cruz S/A. Esse modelo de desenvolvimento dependente, em que se associa o capital estrangeiro com o capital nacional, é tema recorrente nas pesquisas sobre a história econômica da América Latina e a consolidação dessas duas empresas em Santa Cruz do Sul é considerada até hoje como marco do recorte cronológico na análise da história econômica local.

Referências

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Notas

1 O processo de formação das colônias de imigração alemã no Rio Grande do Sul foi analisado por Porto (1996), publicado originalmente em 1934 e reforçava a narrativa de forte valorização do trabalho do imigrante alemão no processo de desenvolvimento estadual.
2 Em relação ao contexto de consolidação do II Reinado, a obra de Carvalho (1996), permite compreender os arranjos institucionais que garantiram o projeto de colonização europeia na segunda metade do século XIX; em relação ao contexto internacional, a obra de Hobsbawm (1997), permite compreender os conflitos que ocorriam na Europa e levaram milhares a migrarem para a América.
3 Parte importante desses comerciantes iniciaram suas atividades econômicas na agricultura familiar. O trabalho de Jorge Luiz da Cunha (2006) aborda a diferença entre as categorias “imigrantes” e “colonos” dentro da narrativa historiográfica que busca explicar esses grupos: o primeiro é formada por famílias, na maioria italiana, que vão para São Paulo trabalhar como assalariados nas lavouras cafeeiras com o objetivo de substituir a mão de obra escrava; o segundo grupo possui uma característica distinta da anterior, pois são formadas por famílias que se instalam no nordeste do Rio Grande do Sul, tanto alemães quanto italianos, na condição de pequenos proprietários agrícolas num ambiente de fraca atuação da grande propriedade monocultora. O trabalho de Rosane Márcia Neumann (2009) reforça essa peculiaridade ao destacar que a dinâmica empresarial desse grupo “colono” constituiu uma memória coletiva que contribuiria para explicar o desenvolvimento econômico de comunidades constituídas no sul do Brasil.
4 Ani Hass chamou a atenção para a camada social que mais concentrou riqueza no Rio Grande do Sul ao longo do século XIX, mas não aproveitou esse potencial para estruturar uma indústria local, a dos pecuaristas. Esse segmento não investiu em atividades industriais, seja como empresário ou como financiador. Isso ocorreu tanto no período inicial de industrialização gaúcha quanto no posterior à formação da indústria do estado. O resultado foi que cidades condicionadas à pecuária, principalmente na metade sul, entraram em processo de estagnação econômica quando a indústria de carnes se modernizou e foi encampada pelos imigrantes.
5 Krause (2002) mergulhou no universo social de Santa Cruz do Sul na I República e mensurou três universos (rural, econômico e político) que poderiam provar que havia uma suposta “ética protestante” de Max Weber no sucesso da elite luterana de Santa Cruz do Sul. Porém a esta tese se poderia contrapor o argumento de que o sucesso empresarial também ocorria em comunidades de imigrantes exclusivamente católicos, como em Caxias do Sul, fundada em 1875, 25 anos depois que Santa Cruz do Sul, em condições territoriais muito piores. O sucesso econômico de sua elite, constituída por imigrantes italianos majoritariamente católicos, não seria explicado pelo fator religioso, pois esse grupo enriqueceu a uma velocidade maior que o de Santa Cruz do Sul. A cidade de Caxias do Sul, na virada do século XX, era um dos principais polos econômicos do Rio Grande do Sul.
6 Fonte: Relatórios dos presidentes de Província, Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. Apud Krause (2002). Cada relatório pode ser encontrado em http://hemerotecadigital.bn.br/acervo-digital/relatorios-presidentes-provincias-brasileiras/252263.
7 Sobre essas transformações podemos ver Furtado (1983).
8 Merecem destaque as análises de Roche (1969), Vogt (1997), Montali (1979), Cadoná (2002) e Krause (2002).
9 Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul. Poder Executivo. Atos do Governador, 1905.
10 Esses documentos foram primeiramente preservados por José Ernesto Riedl, no Museu de Santa Cruz; posteriormente, Hardy Martin os transferiu para o fundo de documentos do Museu do Colégio Mauá e, em 1981, para o Arquivo Histórico do Colégio Mauá. A partir de 2007, seriam incorporados pelo Centro de documentação e Memória da Universidade de Santa Cruz do Sul.
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