Apresentação

Apresentação

Presentation

Apresentación

Cláudia Regina Nichinig
Universidade Federal da Grande Dourados, Brasil
Dulceli de Lourdes Tonet Estacheski
Universidade Federal do Mato Grosso do Sul, Brasil
Cristina Scheibe Wolff
Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil

Apresentação

Fronteiras: Revista de História, vol. 22, núm. 39, pp. 7-13, 2020

Universidade Federal da Grande Dourados

Copyright Universidade Federal da Grande Dourados 2020

Gênero e interseccionalidades no ensino de História

Pensar o ensino de História em tempos de pandemia gera muitas inquietações, sobretudo ao observarmos a desigualdade social que assola o país sendo intensificada. O caos na saúde pública, na economia e na educação não apenas revelam as exclusões sociais como dão a elas novas formas e novos níveis. Muitas vidas estão se perdendo, sobretudo de pessoas pobres, de pessoas negras, que não tem acesso a recursos da saúde, que não possuem o privilégio de poder manter o necessário distanciamento social para precaver-se da Covid19. Pessoas pobres precisam sair de suas casas para trabalhar independente do risco que correm no trajeto ou no local de trabalho. Muitas são mulheres que atuam como domésticas, como enfermeiras, como cuidadoras. Pessoas pobres são excluídas dos estudos remotos pela falta de acesso às tecnologias. Sem computadores em casa ou sem celulares capazes de comportar os aplicativos e armazenar arquivos, sem internet. Famílias grandes em espaços pequenos dividindo um único celular e a internet do/a vizinho/a para que todas as crianças façam as atividades remotas. Pessoas da área rural, sem acesso à internet. O caos revelando e intensificando as diferenças e as desigualdades e nos movendo a refletir sobre os sentidos do que estamos fazendo e para onde caminhamos no ensino de História, pois acreditamos que é possível (e necessário) propormos uma pedagogia engajada (HOOKS, 2013).

Dois pontos nos parecem fundamentais nessa empreitada: o sentido do aprender e ensinar história e a questão da interseccionalidade como ferramenta analítica que considera as múltiplas diferenças e desigualdades. Com relação ao primeiro ponto, as teorias de Jörn Rüsen pautadas na perspectiva do desenvolvimento da consciência histórica nos permitem pensar um aprender e ensinar História que considera as interações com a vida prática. Em seu texto “Como dar sentido ao passado”, Jörn Rüsen (2009) argumenta que o objeto de estudo da história é o presente e não o passado, pois é nele que surgem as inquietações que nos movem a pesquisar o passado, que ao ser compreendido nos ajuda a problematizar o presente e perspectivar o futuro. Ao elaborar a sua matriz disciplinar, Jörn Rüsen (2001) sintetiza a dinâmica da elaboração do pensamento histórico que parte das carências de orientação no tempo para as ideias históricas, tendo na História, como campo especializado do conhecimento, um lugar de elaboração com métodos de pesquisa e de apresentação de resultados, que só farão sentido se voltarem para a vida prática com uma função de orientação existencial.

Pesquisar história, ensinar história, aprender história, é mais do que ter algum conhecimento, ou um conjunto de informações sobre o passado. A abordagem proposta por Jörn Rüsen é um convite à superação do ensino pautado apenas nas informações sobre determinados conteúdos do passado. É uma história viva (RÜSEN, 2007), pois é o pensar historicamente que move as ações humanas. Faz muito sentido acolher essa proposta teórica nesse tempo de caos social, quando voltamos o nosso olhar para as complexidades do mundo, para as desigualdades e injustiças refletindo sobre o nosso lugar social e as contribuições possíveis de nossa área do conhecimento para as transformações necessárias. Quando retornarmos às salas de aula, pós pandemia, que olhar teremos para os diferentes sujeitos presentes nelas e que práticas educativas assumiremos para que a escola seja um espaço promotor de equidade e não um reforço da desigualdade social?

Em sua obra Humanismo e didática da história, Jörn Rüsen (2015, p. 21), argumenta que a Didática da História precisa responder aos desafios da orientação histórica no que diz respeito ao aprendizado histórico. Um dos desafios apontados pelo autor é a “pressão da diversidade cultural”, pois a diferença não é mais, segundo o autor, uma questão de distância e sim de proximidade, pois a vida cotidiana dos sujeitos da escola “está profundamente condicionada pela experiência da diversidade cultural e pelas tensões entre diferentes tradições e culturas”. E é aqui que nos direcionamos ao nosso segundo ponto, a reflexão sobre a educação, o cotidiano escolar e o ensino de história por uma perspectiva interseccional. Nossa proposta com o dossiê foi refletir sobre como no chão da escola as identidades, as diferenças, e, portanto, as intersecionalidades se constituem em diferentes formas de opressão e desigualdades. Assim, os marcadores de gênero, classe, raça, etnia, geração, deficiências, religiões, são diferenças que afetam as experiências e as vivências, muitas vezes se transformando em formas de exclusão e evasão escolar.

A história tem um papel fundamental para a compreensão dessas desigualdades, que, afinal, são frutos de uma história, que no Brasil, passou pela escravização de africanos; pelo genocídio, escravização e espoliação dos indígenas; pela opressão das mulheres e dos trabalhadores. E por isso a história é uma disciplina tão visada pelos grupos que, no momento atual, buscam o retrocesso político, e a conservação de relações de poder baseadas no elitismo, no racismo, na misoginia e no poder econômico (PAYNE; SANTOS, 2020).

As diferentes iniciativas e experiências que os artigos aqui apresentados propõem buscam mostrar e superar as desigualdades e fazer com que a escola e especialmente o ensino de história, propicie que as múltiplas trajetórias sejam ensinadas, buscando que os/as estudantes se sintam representados no ensino de história. Não somente isso, também busca que o ensino de história propicie formas de emancipação das pessoas. O ensino de história, ao incluir as intersecionalidades, propõe fugir de uma lógica colonial e elitista que impulsionou o ensino de nossa disciplina desde sua origem, o qual objetivava formar apenas as elites de nossa sociedade, o que invisibiliza e não reconhece a história e a memória de mulheres, negros/as, indígenas, quilombolas, população periférica, e muitos outros grupos. A problematizações de experiências e teorias educacionais engajadas e emancipatórias, como nos ensina Nilma Lino Gomes, propõe “retirar os conhecimentos produzidos pela população negra brasileira e as discussões sobre África e Diáspora Africana do lugar da subalternidade epistemológica que lhes era imposta” (GOMES, 2019, p. 224) e a partir dessas inclusões provocar uma virada epistémica que surge das periferias e dos movimentos sociais brasileiros.

Mas se após a Constituição Federal de 1988, legislação de caráter democrática que deu visibilidade a sujeitos e temáticas, e com a proposição dos movimentos negros brasileiros que tivemos a implantação de leis como as de número 10639/03 e 11645/08, um grande passo foi dado no sentido de estudarmos e conhecermos as culturas afro-brasileiras e indígenas. Já os estudos de gênero e sexualidade, que propõem uma educação libertadora e igualitária, objetivando relações não violentas e livres de discriminação, têm sua previsão na Constituição Federal (BRASIL, 1988), na Lei Maria da Penha (BRASIL, 2006), e nos diferentes documentos e diretrizes educacionais, como os Planos Nacionais Curriculares, o que foi apresentado também pelos artigos desta coletânea. Mesmo que exista um forte debate conservador que se inicia em 2014 e culmine com os impedimentos para a discussão de gênero e sexualidade nas escolas, com a exclusão das temáticas na Base Nacional Comum Curricular (BNCC), homologada em dezembro de 2017, ainda assim é possível abordar as temáticas a partir dos debates sobre os direitos humanos e a não discriminação. Assim, ao acusarem os estudos de gênero como uma forma de ideologia, a sua oposição é que se apresenta através de um caráter visivelmente ideológico e conservador quando busca impedir as abordagens no campo da educação, sendo que estas estão baseadas nos princípios constitucionais da igualdade, liberdade e não discriminação.

Os artigos que apresentamos nesta coletânea demonstram estratégias e possibilidade de ensinar história levando em conta as interseccionalidades, provocando o que Nilma Lino Gomes chama de “descolonização dos currículos e do próprio campo do conhecimento” (GOMES, 2019, p. 224), principalmente porque leva em consideração os marcadores da diferença como o gênero, a raça, a classe e as etnias abordados em cursos e disciplinas.

Ao traçar uma trajetória histórica das categorias de articulação e das interseccionalidades, Adriana Piscitelli (2008, p. 267) apresenta diferentes autoras que se apropriam dessas ferramentas analíticas em seus debates e argumenta que “o debate sobre as interseccionalidades permite perceber a coexistência de diversas abordagens” possibilitando compreender as articulações entre diferenças e desigualdades múltiplas.

Sendo a sala de aula um lugar de diferenças culturais que podem ser promotoras de ricos conhecimentos, mas também de desigualdades socialmente construídas, defendemos que o pensamento histórico interseccional seja um caminho para promover mudanças necessárias em prol da equidade. A escola vivencia cotidianamente embates relativos a gênero, classe, raça, etnia, geração, deficiências, entre outros. Como estas questões têm sido acolhidas, geridas, problematizadas? Que emoções – entre sofrimentos e fortalecimentos – estes embates têm suscitado? Como teorizá-los para então elaborar estratégias metodológicas que permitam superar o que causa dor e fomentar o que promove o desenvolvimento social? Quais são os compromissos dos diferentes sujeitos da educação nessa empreitada em prol de uma educação que valoriza a diversidade de gênero, classe, raça, geração? Reflexões como estas inspiraram esse dossiê que reúne artigos que discutem as temáticas de gênero e interseccionalidades relacionadas ao debate do ensino de história e da educação.

“Ditadura, gênero e racismo no tempo presente: diário de um encontro docente”, texto de Nashla Dahás e Adriana Silva Teles Boudoux, evidencia carências formativas e expectativas de docentes da educação básica. Trata-se de um relato sobre a experiência vivenciada em um minicurso sobre “Os desafios do ensino de história em tempos de conservadorismo e neoconservadorismo”, tema fundamental para o contexto atual. O que confere importância central nesse texto é a afirmação de que a demanda pelo debate interseccional surgiu nos diálogos com docentes ao longo do minicurso, que foi se construindo e reconstruindo a partir dos interesses das pessoas presentes. Essa é a dinâmica de uma formação histórica carregada de sentido para a vida prática.

O texto “Gênero e interseccionalidade no ensino de História: reflexões e apontamentos sobre a importância da historicização da diferença nos processos de educação histórica”, de Álvaro Ribeiro Regiani e Kenia Erica Gusmão Medeiros, apresenta uma síntese das duas perspectivas teóricas que aqui apontamos: os estudos interseccionais e o debate sobre a educação histórica. Na sequência, autor e autora listam uma série de exemplos de temas do conhecimento histórico sugerindo possibilidades para seu estudo/ensino pautando-se nas questões de gênero e interseccionalidades.

O relato de experiência de Lauri Miranda Silva, expresso no texto “Experiências e estratégias no ensino de História sobre gênero e sexualidade na educação básica em Triunfo/Candeias do Jamari-RO” demonstra as possibilidades de trabalhar no ensino fundamental e médio com as questões relativas à homotransfobia, machismo, feminicídio, sexismo, estimulando o respeito à pluralidade e sensibilizando a comunidade escolar em relação às discriminações e violências.

Everton Carlos Crema, no artigo “A escola como espaço de mediação do conhecimento e humanização” apresenta resultados de dois projetos de extensão universitária que promoveram o diálogo entre docentes e discentes da educação básica com pesquisadores e pesquisadoras de um Laboratório de Aprendizagem Histórica. O autor, pautado nas teorias de Jörn Rüsen sobre um novo humanismo, defende que a escola ao promover o conhecimento sobre a diversidade gera qualidade explicativa e compreensiva com potencial transformador para a sociedade.

Janine Gomes da Silva e Robson Ferreira Fernandes, no texto “Ensino de História e o projeto ‘Diversidade na escola’: os cartazes como fontes para subjetividades”, fomentam o debate sobre a relevância do tema sexualidade na escola para superar preconceitos e violências. As experiências narradas colaboram para a valorização dos movimentos sociais e suas lutas por equidade e justiça social, demonstrando como a escola pode ser acolhedora e promotora de transformações sociais.

Em “Sentidos e significados de ser mulher, negra, pobre e analfabeta”, Samira de Moraes Maia Vigano apresenta relatos de mulheres estudantes da Educação de Jovens e Adultos, de uma turma de alfabetização. A autora em um instigante e emocionante texto nos brinda com o relato de uma experiência positiva demonstrando que uma boa escolha de materiais e práticas didáticas podem promover a representatividade e o estímulo ao desenvolvimento social, consolidando, como a própria autora afirma, as vozes das mulheres da Educação de Jovens e adultos.

Nessa perspectiva do pensar os textos trabalhados em sala de aula, Ana Maria Marques e Ana Carolina do Nascimento Albuquerque, no texto “Mulheres e a história aprendida nos livros didáticos: análises de coleções didáticas”, apresentam uma série de dados que evidenciam a desigualdade de gênero e apresentam uma reflexão contundente sobre a necessidade de atentarmos para a escolha dos materiais didáticos que serão utilizados na escola.

Por fim, Edna Maria Matos Antonio e Fernanda Carolina Pereira dos Santos, no artigo “Formação docente e ensino de História: violência contra as mulheres e sua luta por direitos como tema da experiência didático-pedagógica em sala de aula”, apresentam uma experiência de atividade realizada pelo PIBID/História da Universidade Federal de Sergipe que traz como enfoque a temática da violência contra as mulheres partir de uma perspectiva feminista e de gênero.

Esta edição da revista conta ainda com dois artigos livres, uma resenha e uma entrevista. O artigo “A estatística do crime no oitocentos por Francisco José Viveiros de Castro: dados do Brasil e do Rio de Janeiro”, de Adriana Gomes, que analisa a fonte histórica Ensaio sobre a Estatística Criminal da República, e o texto de Samuel Cabanha e Samuel Klauck, “Recordações, disputas e enfrentamentos entre memórias: a presença portuguesa em Foz do Iguaçu”, trabalho de história oral que analisa as narrativas de dois imigrantes portugueses que edificaram na cidade de Foz do Iguaçu a Casa Portugal. Eduardo Martins elaborou a resenha da obra 1989: história da primeira eleição presidencial pós-ditadura, de Cássio Augusto Guilherme (2019), enquanto Cláudia Regina Nichnig e Paula Faustina Sampaio nos presenteiam com “A luta dos(as) Guarani e Kaiowá em Mato Grosso do Sul por Kunã Aranduhá”, uma entrevista realizada em 2019 com Jaqueline Gonçalves Porto, Kunã Aranduhá na língua guarani, liderança feminina dos povos tradicionais, uma das organizadoras do Kuñangue Aty Guasu (Grande Assembleia de Mulheres Indígenas Guarani e Kaiowá).

A leitura desses textos foi significativa e enriquecedora para nós que organizamos esse dossiê. Desejamos que seja inspiradora a todas e todos que o acessem.

Referências

GOMES, Nilma Lino. O movimento negro e a intelectualidade negra descolonizando os currículos. In: BERNARDINO-COSTA, Joaze; MALDONADO-TORRES, Nelson; GROSFOGUEL, Ramón. Decolonialidade e pensamento afrodiaspórico. Belo Horizonte: Autêntica, 2019, p.223-246.

HOOKS, Bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática de liberdade. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2013.

PAYNE, Leigh A. e SANTOS, Andreza A. de S. The Right-Wing Backlash in Brazil and Beyond. Politics &Gender, Vol. 16, n.1, 2020, p. 32-38.

PISCITELLI, Adriana. Interseccionalidades, categorias de articulação e experiências de migrantes brasileiras. Sociedade e Cultura, vol. 11, n. 2, jul-dez 2008, p. 263-274. Disponível em: https://www.revistas.ufg.br/fchf/article/viewFile/5247/4295. Acesso em: 07/07/2020.

RÜSEN, Jörn. Humanismo e didática da história. Curitiba: W.A. Editores, 2015.

RÜSEN, Jörn. Como dar sentido ao passado: questões relevantes de meta-história. Revista História da Historiografia. Ouro Preto. N 2. Março de 2009. Disponível em: https://www.historiadahistoriografia.com.br/revista/article/view/12. Acesso em: 06/07/2020.

RÜSEN, Jörn. História Viva: Teoria da história: formas e funções do conhecimento histórico. Brasília: UNB, 2007.

RÜSEN, Jörn. Razão Histórica – Teoria da história: os fundamentos da ciência histórica.Trad. Estevão de Rezende Martins. Brasília: Ed. UNB, 2001.

Autor notes

Claudia Regina Nichnig é historiadora e doutora em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina, na área de Estudos de Gênero, e pós-doutora em História e Antropologia Social. É professora visitante no Programa de Pós Graduação em História da Universidade Federal da Grande Dourados, no Mato Grosso do Sul.
Dulceli de Lourdes Tonet Estacheski é professora Adjunta do curso de História da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul, Campus Nova Andradina.
Cristina Scheibe Wolff é doutora em História Social pela Universidade de São Paulo e pós-doutora pela Université Rennes, na França e pelo Latin American Studies Center da University of Maryland, em College Park, nos Estados Unidos da América. Atualmente é professora titular do Departamento de História da Universidade Federal de Santa Catarina
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