Dossiê 16: História, patrimônio cultural e práticas educativas

Arquitetura histórica e o ensino de História

Historical architecture and Historiy teaching

Arquitectura histórica y enseñanza de Historia

Carlos Edinei de Oliveira
Universidade Estadual de Mato Grosso, Brasil

Arquitetura histórica e o ensino de História

Fronteiras: Revista de História, vol. 21, núm. 38, pp. 90-103, 2019

Universidade Federal da Grande Dourados

Copyright Universidade Federal da Grande Dourados 2019.

Recepção: 09 Outubro 2019

Aprovação: 14 Novembro 2019

Resumo: O artigo tem como objeto a relação entre a arquitetura e o ensino de história, com a proposta de utilizar a arquitetura como uma linguagem para o ensino de História. Desta forma, tem como objetivo apresentar uma construção histórica, denominada de “Arquitetura Poaieira”, como proposta para o ensino de história e, também como prática à educação patrimonial. Arquitetura poaieira é uma representação singular do patrimônio cultural edificado no Centro Oeste brasileiro, localizado à margem direita do Rio Paraguai, em Mato Grosso. A arquitetura resistente no tempo presente em interface com a pesquisa e o ensino de História dá visibilidade para a vida social e as relações de poder que ainda se constituem na localidade em estudo. Metodologicamente o texto foi construído tendo como referências estudos da história da arquitetura, da história e do ensino de história. O uso da arquitetura com linguagem para o ensino de história não se limita à edificação construída, mas em todo o processo de investigação que possibilite ao professor trabalhar com seus alunos de maneira reflexiva. Os passos metodológicos para o ensino de história, tendo a arquitetura histórica como referência devem ser construídos no diálogo que permita: a observação, a identificação, a comparação, a contextualização, a interpretação, e a análise da edificação estudada.

Palavras-chave: Linguagem arquitetônica, Arquitetura poaieira, Patrimônio cultural, Ensino reflexivo, História do Brasil.

Abstract: The article has as its object the relationship between architecture and history teaching, with the proposal to use architecture as a language for history teaching. Thus, it aims to present a historical construction, called "Poaieira Architecture", as a proposal for the teaching of history and also as a practice for heritage education. Poaieira architecture is a unique representation of the cultural heritage built in the Brazilian Midwest, located on the right bank of the Paraguay River, in Mato Grosso. The resistant architecture in the present time in interface with the research and the teaching of History gives visibility to the social life and the power relations that still constitutes the locality under study. Methodologically the text was built having as reference studies of the history of architecture, history and the teaching of history. The use of language architecture for the teaching of history is not limited to the built building, but in the entire research process that enables the teacher to work with his students in a reflective manner. The methodological steps for the teaching of history, taking historical architecture as a reference should be built in a dialogue that allows: observation, identification, comparison, contextualization, interpretation, and analysis of the building studied.

Keywords: Architectural language, Poaieira architecture, Cultural heritage, Reflective teaching, Brazilian History.

Resumen: El artículo tiene como objeto la relación entre la arquitectura y la enseñanza de la historia, con la propuesta de utilizar la arquitectura como lenguaje para la enseñanza de la historia. Por lo tanto, tiene como objetivo presentar una construcción histórica, llamada "Arquitectura de Poaieira", como una propuesta para la enseñanza de la historia y también como una práctica para la educación del patrimonio. La arquitectura de Poaieira es una representación única del patrimonio cultural construido en el Medio Oeste brasileño, ubicado en la margen derecha del río Paraguay, en Mato Grosso. La arquitectura resistente en la actualidad en la interfaz con la investigación y la enseñanza de la historia da visibilidad a la vida social y las relaciones de poder que todavía constituyen la localidad en estudio. Metodológicamente el texto fue construido teniendo como referencia estudios de la historia de la arquitectura, la historia y la enseñanza de la historia. El uso de la arquitectura del lenguaje para la enseñanza de la historia no se limita al edificio construido, sino a todo el proceso de investigación que permite al maestro trabajar con sus alumnos de manera reflexiva. Los pasos metodológicos para la enseñanza de la historia, tomando la arquitectura histórica como referencia, deben construirse en un diálogo que permita: observación, identificación, comparación, contextualización, interpretación y análisis del edificio estudiado.

Palabras clave: Lenguaje arquitectónico, Arquitectura Poaieira, Patrimonio cultural, Enseñanza reflexiva, Historia de Brasil.

Introdução

Manoel de Barros (2008), em sua obra Memórias Inventadas, escrevendo “Sobre Importâncias”, nos diz que:

Um fotógrafo-artista me disse outra vez: Veja que pingo de sol no couro de um lagarto é para nós mais importante do que o sol inteiro no corpo do mar. Falou mais: que a importância de uma coisa não se mede com fita métrica nem com balanças nem com barômetros etc. Que a importância de uma coisa há que ser medida pelo encantamento que a coisa produz em nós (BARROS, 2008, p.109).

Neste sentido, como nós professores de história, que fazemos constantes viagens para o pretérito, podemos encantar nossos alunos no presente? Como podemos produzir uma satisfação em nossos alunos para que eles possam por meio da história, serem motivados a conhecer, a pensar e a agir sobre o que não conhecem para que novas atitudes possam ser tomadas sobre o ser e o estar em convívio social?

Na perspectiva interdisciplinar de ensinar história, na tentativa de produzir encantamentos nos alunos da Educação Básica, este texto objetiva apresentar uma construção histórica, como proposta para o ensino de história e, também como incentivo à educação patrimonial. A casa, objeto em análise, é uma construção que resiste ao tempo presente, e que nos permite um exercício sobre o ensino de história, tendo a arquitetura como fonte inspiradora para a elaboração de aulas de história.

O que nos motiva a indagar a arquitetura para ensinar história, é percepção de que em todas as cidades ou lugarejos, temos construções e ou monumentos que nos remetem à memória, ao passado, permitindo-nos usá-la como linguagem, para a escrita e o ensino de história e contribuir com referências para a guarda e bom uso do patrimônio cultural. A arquitetura materializada no espaço é arte, é técnica e tem natureza social, sua presença provoca algum tipo de interferência para os sujeitos que com ela se relaciona, as vezes de forma intensa ou passageira, as vezes sem esforço. Para Walter Benjamin (1987) a arquitetura tem uma história longa e jamais deixou de existir:

Os edifícios acompanham a humanidade desde sua pré-história. Muitas obras de arte nasceram e passaram. A tragédia se origina com os gregos, extingue-se com eles, e renasce séculos depois. A epopeia, cuja origem se situa na juventude dos povos, desaparece na Europa com o fim da Renascença. O quadro é uma invenção da Idade Média, e nada garante sua duração eterna. Mas a necessidade humana de morar é permanente. A arquitetura jamais deixou de existir. Sua história é mais longa que a de qualquer outra arte, e é importante ter presente a sua influência em qualquer tentativa de compreender a relação histórica entre as massas e a obra de arte (BENJAMIN, 1987, p.193).

Em busca da tentativa de compreender a relação histórica da arquitetura com as massas em suas diversas temporalidades, impulsiona o ingresso do professor pesquisador em história, de uma forma mais contundente no exercício de apropriação do campo do patrimônio cultural e do campo da história da arquitetura, tendo as construções como referências do passado/presente, usando-as para atribuir sentidos, significados e encantamentos no tempo presente nas aulas de História.

As diversas linguagens da arquitetura também, podem ser “fontes estimulantes que possam engajar nossos estudantes na direção do tema estudado e permitem explorar a complexidade do passado abrem espaço para o aprendizado efetivo” (ALBERTI, 2019, p.107).

A proposta do uso da arquitetura, para o ensino de conteúdos de história, não se limita apenas ao equipamento construído e suas características, mas, sobretudo, as quais investigações históricas a construção inspira, assim como, o pensar sobre as práticas sociais, os valores culturais e as decisões políticas que a arquitetura remete, e possibilita ao professor ensinar história de forma reflexiva. A arquitetura histórica, no presente, é sem dúvida, uma marca visível, palpável do passado. Neste sentido concordamos com Júlio De Lamônica Freire (1997) quando afirma que:

Os bens culturais construídos no passado da cidade não são, pois, uma permanência estática do espaço tempo. Um velho casarão ou uma velha rua se renovam a cada modificação do seu entorno, ganhando novas funções, novos significados, novos sentidos. Ao mesmo tempo que se modificam sob a dinâmica do entorno, não perdem as características que os distinguem como signos ativos. Sua existência como signos não é estática: não são um casarão e uma rua imóveis no tempo, símbolos estáticos do passado urbano. São espaços vivos por onde flui a continuidade entre o passado, o presente e o futuro. Não devem ser vistos tratados e compreendidos como sobrevivências, transformados em simulacros de um momento urbano superado, em monumentos fúnebres de um espaço e de um tempo desaparecido. São bens culturais vivos e pulsantes no processo de desenvolvimento urbano em movimento. São signos ativos como todos os demais que compõem o repertório urbano (FREIRE, 1997, p.133).

Trazer a arquitetura como fonte para o registro da história e também para o ensino de história é algo que só foi possível após a abertura iniciada pelo materialismo histórico e posteriormente pelos Annales, momento em que a historiografia ampliou o conceito de fonte histórica, o documento como era concebido pela historiografia positivista deixou de ser apenas o registro político e administrativo e então “principalmente com seus seguidores da “Nova História” na segunda metade do século XX, o conceito de documento foi modificado qualitativamente abarcando a imagem, a literatura e a cultura material”(SILVA, SILVA, 2005, p.199).

Pensar a arquitetura como uma nova linguagem para o ensino de história é contribuir para a formação de gerações que possam pensar, refletir e construir conhecimentos históricos significativos na proposta, de olhar o objeto construído, analisar sua linguagem e relacionar com os aspectos históricos, sociais, políticos, econômicos dentre outros, dando ao local analisado um saber explicativo sobre o bem cultural edificado.

Os registros e vestígios das mais diversas naturezas [...] deixados pelos indivíduos carregam em si mesmos a experiência humana, as formas específicas de produção, consumo e circulação, tanto de objetos quanto de saberes. Nessa dimensão, o objeto histórico transforma-se em exercício, em laboratório da memória voltado para a produção de um saber próprio da história (BRASIL, 2017, p.396)

A arquitetura histórica que compõe a cultura material é portadora de informações sobre costumes, técnicas, ritos, imaginários e práticas sociais diversas. As informações presentes na edificação são obtidas dependendo dos questionamentos que se realiza sobre ela, transformando-a em documento, e em um precioso recurso didático para a aprendizagem histórica.

Neste sentido, a utilização da arquitetura como vestígio para o ensino de história “pode auxiliar o professor e os alunos a colocarem em questão o significado das coisas do mundo, estimulando a produção do conhecimento histórico em âmbito escolar” (BRASIL, 2017, p. 396). Valorizar um bem material, em especial para o ensino de história é possibilitar que o patrimônio seja entendido como um signo polifônico, de diferentes falares, inspirado em diferentes interpretações de mundo que possibilitam diversas leituras, potencializando significados relativizadores (KERSTEN, 2000).

É significativo salientar, que a temática específica sobre patrimônio na Base Nacional Comum Curricular para o Ensino Fundamental (BNCC), está presente apenas em uma das unidades temáticas do 5º ano, “Registro da história: linguagens e cultura”, tendo como objeto de conhecimento, “Os patrimônios materiais e imateriais da humanidade”, e como habilidade, “Inventariar os patrimônios materiais e imateriais da humanidade e analisar mudanças e permanências desses patrimônios ao longo do tempo” (BRASIL, 2017). Isso evidencia a necessidade e importância da utilização da arquitetura como linguagem para o ensino de história e para o fortalecimento dos espaços patrimoniais das cidades.

Trabalhar com a arquitetura para o ensino de História rompe a ideia de que a construção do currículo se limita apenas a um enfoque disciplinar. “Estudar o passado significa fazer referência às múltiplas experiências dos seres humanos no tempo, que são, antes de tudo, permeadas por um conjunto de conhecimentos e aspectos que não podem ser reduzidos a um recorte disciplinar” (CATELLI JÚNIOR, 2009, p.05).

O bem cultural pensado e investigado para a propositura de práticas para o ensino de história na educação básica é uma edificação construída durante a Era Vargas em Mato Grosso. Trata-se de uma casa comercial e residencial, edificada nos anos 30, do século XX, em uma linguagem singela na cidade de Barra do Bugres, no interior do Estado de Mato Grosso, denominada neste texto de arquitetura poaieira.

Arquitetura de terra: comércio de poaia1

Mato Grosso cujo espaço era ocupado por diversos povos indígenas, teve em seu território a partir do século XVIII a presença de bandeiras paulistas em busca de índios para escravizar e de minérios. A preação indígena e a mineração foram os primeiros motivos para o domínio não indígena do território mato-grossense.

Posteriormente, a partir da segunda metade do século XIX, além da mineração, a extração de produtos naturais como a erva mate (Ilex paraguariensis), a borracha (Hevea brasiliensis) e a poaia (Cephaeles ipecacuanha), movimentaram a economia da província e, posteriormente do estado de Mato Grosso. Esses elementos econômicos fizeram com que surgissem arraias, vilas e posteriormente cidades.

Neste sentido, a poaia, também conhecida como ipeca foi responsável pelo povoamento do atual município de Barra do Bugres, por volta de 1878. Quando chegaram os primeiros habitantes não-indígenas em Barra do Bugres, iniciaram uma agricultura de subsistência para que se mantivessem no local e, ao mesmo tempo, trabalhassem na extração da poaia.

Por volta de 1896, Barra do Bugres foi elevada à condição de paróquia pela Lei nº 145, de 08 de abril do mesmo ano, com a denominação Paróquia de Barra do Rio dos Bugres, pertencente ao município de São Luís de Cáceres. Barra do Bugres foi elevada a município em 1943, conforme Decreto-Lei nº 545, de 31 de dezembro de 1943.

A exploração da poaia em Barra do Bugres, no século XIX, vai causar a quase extinção do povo Umutina, grupo Macro-Gê, da família linguística bororo. A destruição deste povo indígena foi marcada pelo contato com comerciantes, poaieiros e seringueiros que tinham grande interesse pela exploração das riquezas das matas ciliares.

A poaia, até meados do século XX, era fonte econômica importante para Barra do Bugres. Alguns comerciantes de poaia daquele município vão manter um padrão de vida superior ao da maioria da população. O poaieiro, explorado, vive de forma quase desumana durante a extração da poaia (outubro a maio) e, principalmente, durante o período em que não se fazia a extração, ou seja, a entressafra.

A exploração do trabalhador e sua relação com o patrão de poaia se fazia em ciclo de dependência econômica:

Ao final de abril ou maio, os trabalhos na mata encerravam-se, ocasião em que o poaieiro saía da mata escura, onde não recebia luz do sol, e se dirigia para a beira dos rios, com destino à cidade ou distrito mais próximo. Geralmente, o poaieiro chegava doente, muitas vezes com malária, pálido e magro. Sem condições de se manter às próprias custas, pois lhe restava pouco capital ao final da safra, era comum que ele fosse trabalhar para o patrão, junto às suas roças, a meia. O poaieiro plantava em terras alheias e, ao final da produção, dividia-a ao meio com o dono das terras (SIQUEIRA, et al., 1990. p. 6).

Na região de Barra do Bugres, especialmente entre os anos de 1940 a 1960, a principal moeda de circulação era a poaia. Os donos das casas comerciais eram também os exportadores de poaia. A sociedade estava presa ao domínio do comércio imposto por eles. O patrão da poaia sempre estava no comando político local. A relação de compadrio também existia entre poaieiros e patrões. Os patrões da poaia estabeleciam os preços de mercado para a compra da poaia e eram responsáveis pela criação de decretos-leis municipais que garantissem a conservação da mata da poaia para a continuidade da extração.

A casa, no desenho a seguir2, construída nos anos 30 do século XX a pedido do seu proprietário3, apresentada com um letreiro “Jamil Pesca”, é uma arquitetura histórica que nos remete a cidade de Barra do Bugres nos tempos da exploração vegetal de poaia. Esta casa era uma residência típica de patrão de poaia, evidenciada pelos seus aspectos construtivos, pois apenas, as pessoas detentoras dos meios de produção, no início do século XX, nesta localidade, moravam em residências construídas em adobe, sendo que a maioria, os trabalhadores, denominados poaieiros, moravam em residência de pau-a-pique, ou de taipa-de-mão.

Figura 01: Arquitetura poaieira
Figura 01: Arquitetura poaieira
Fonte: Desenho Ana Clara Pinhão /2011.

Esta residência pode ser caracterizada como uma arquitetura poaieira, pois sua existência era diretamente influenciada pelas determinações econômicas, políticas e sociais do tempo da exploração da poaia. Ela está localizada na Rua Pedro Torquato4, s/n, calçada com paralelepípedos, próximo ao Rio Paraguai, que era o caminho do abastecimento de Barra do Bugres, e por ele os produtos extrativistas eram encaminhados para exportação seguindo para os principais portos de Mato Grosso, primeiro para Cáceres e depois para Corumbá. Destes portos, a poaia era enviada para a Europa.

A casa misturava espaço comercial e residencial. Uma das partes da construção que está voltada para a rua era destinada ao comércio poaieiro, neste espaço a poaia era barganhada pelos extrativistas, por produtos de primeiras necessidades como: sal, fumo, querosene, ferramentas e outros produtos, gerando uma dependência econômica e social entre o dono do comércio (patrão de poaia) e o poaieiro.

A implantação da residência no terreno ocupava aproximadamente uma área aproximada de 600m2. A construção se localiza na frente do terreno, alinhada à rua, tipicamente como eram as construções da época, tinha nos fundos uma varanda arejada, logo após um quintal amplo com algumas plantas frutíferas.

A residência é uma típica casa de patrão de poaia, como poucas, que ainda existem em Barra do Bugres, construída com adobe5, usando um madeiramento resistente que embora esteja precisando de cuidados tem resistido ao tempo. Na construção ocorrem muitas aberturas em sua parte frontal como portas e janelas em madeira. O telhado é de quatro águas, as telhas utilizadas na construção são capa e canal, feitas de barro, a peça tem curvatura que permite um encaixe alternado: uma côncava, outra convexa. A peça côncava serve para escoar a água da chuva, enquanto a convexa protege a junção dos canais. Esta telha também é conhecida como colonial.

O pé direito e o peitoril6 baixos são características da residência. O piso é de ladrilho hidráulico e as soleiras das portas são de pedra. Embora, a residência ainda, guarda características do início do século XX, do tempo da poaia, já ocorreram muitas modificações na edificação em especial no interior e nos fundos da residência.

A residência em análise pode ser pensada como patrimônio cultural, é um lugar significativo de memória para muitos moradores de Barra do Bugres, é uma edificação que retoma um pretérito do universo da ipecacuanha quando a comunicação e o transporte estavam diretamente ligados às águas do Rio Paraguai.

A linguagem da arquitetura e o ensino de História

Inicialmente, devemos considerar que a arquitetura histórica é um rastro visível das comunidades políticas, é histórica pelo valor histórico expressado nos elementos que a compõe e a faz existir. O material empregado para sua construção, a forma e os saberes usados no processo construtivo, as alterações e o aperfeiçoamentos das técnicas no movimento da construção, suas referências com o seu entorno nas mais diversas temporalidades, sua capacidade de rememoração, dentre outras.

O arquiteto Sílvio Colin (2000) considera a arquitetura como um produto cultural, pois “muito do que sabemos sobre as sociedades e civilizações anteriores às nossas, o aprendemos pela observação e análise da arquitetura desses povos; sabemos sobre hábitos, grau de conhecimento técnico, grau de sensibilidade e ideologia através do estudo dos seus edifícios e ruínas (COLIN, 2000, p.22).

Neste sentido, como a casa em análise pode auxiliar para a construção do conhecimento da História do Brasil? Como podemos construir as referências de identificação, comparação, contextualização, interpretação, análise e estímulo para o pensar histórico tendo como recurso para o ensino, a arquitetura?

O primeiro exercício que indicamos para o trabalho com a arquitetura como instrumento de aprendizagem histórica é a identificação da edificação. Localizar a edificação no tempo presente e reconhecer o seu entorno é condição inicial para a investigação histórica. No caso da arquitetura poaieira, a identificação implica conhecer o local da edificação. A casa está alinhada a uma rua calçada com paralelepípedos, muito próxima a margem direita do Rio Paraguai e tem em seu entorno outras residências que não correspondem a mesma tipologia construtiva.

Cabe ao professor de História, explorar a técnica construtiva do adobe, o papel social do mestre adobeiro nas cidades coloniais e pós-coloniais. Ao explorar está técnica construtiva, é fundamental a análise do seu desuso em construções atuais, permanecendo apenas presente na arquitetura vernácula. Deve-se identificar os primeiros proprietários da residência e investigar a funcionalidade primeira da edificação, que no caso da residência em análise, foi construída para ser espaço comercial de poaia e de residência do proprietário.

Conhecer a poaia e sua importância para economia brasileira extrativista ao final do século XIX até meados do XX é condição para melhor identificação, contextualização e análise do significado da edificação e sua relação com o contexto do movimento de ocupação do interior brasileiro. A poaia é apresentada pelo Album Gráphico do Estado de Mato Grosso7, publicado em 1914, como um recurso a ser explorado, no conjunto das plantas medicinais8, uma grande vantagem da natureza mato-grossense.

O comércio e residência de poaia, remete a identificação do proprietário, como patrão de poaia, neste contexto, é importante que o professor estimule o pensamento dos alunos sobre a relação de poder e o contexto da exploração de trabalho durante a Era Vargas em Mato Grosso. A edificação por trazer o espaço híbrido de comércio e residência corrobora para a interpretação do papel de patrão de poaia.

A figura do patrão apresentava-se em Barra do Bugres quase sempre como a do cacique político, hábil e de fala fácil. Além de possuir a terra ele detinha também em suas mãos o comércio. Assim fechava-se o círculo vicioso. O homem simples e sem instrução estava à mercê daquele que a qualquer momento podia ditar sua sorte. Começa aqui a relação indissolúvel entre o poaieiro e o patrão. De um lado encontramos aquele que por herança detinha o monopólio da terra, usando-a como melhor lhe aprouvesse e de outro lado, o poaieiro homem pobre, sofrido e esperançoso (MIRANDA, 1983, p. 32).

Ao passo que se concretize a identificação da edificação, é importante que o professor explore o processo da comparação, para tanto, é fundamental a relação da construção em análise com outras do seu entorno. No caso da arquitetura, pode-se analisar aspectos estéticos que são visíveis entre construções vizinhas. Olhar para o ritmo da edificação, ou seja, a repetição rítmica de elementos como cheios e vazios, paredes, janelas, elementos projetados e recuados e a presença ou não de ornamentos. A escala também é um elemento que possibilita a comparação. A relação entre o tamanho da construção e o corpo humano revela aspectos aconchegantes e ou opressivos da arquitetura. Os sistemas construtivos, costumam colocar a arquitetura em uma temporalidade muito definida.

Ao pensar a arquitetura como linguagem para o ensino de história é fundamental que o professor insira a construção e sua funcionalidade primeira, em um contexto mais amplo de referências sociais, culturais e econômicas. Evidenciando as particularidades vividas pelas pessoas em um determinado tempo.

Contextualizar a arquitetura na unidade temática em que se estuda é um caminho metodológico significativo para a compreensão do conteúdo histórico. A arquitetura poaieira é uma fonte para o estudo da exploração extrativista, para o movimento de expansão da fronteira brasileira e demais conteúdos que pese as relações de poder, exploração do trabalho, conflitos com povos indígenas, comércio internacional, surgimento de cidades, dentre outros.

No movimento da contextualização, a edificação, deve ser localizada como um lugar específico do tempo da extração da poaia em Mato Grosso, do domínio da força política dos coronéis locais e da exploração do trabalhador brasileiro. O rio Paraguai, cuja residência fica a sua margem, deve ser evidenciado como rota de navegação, comércio e batalhas. A Guerra com o Paraguai, no período Imperial e a Coluna Prestes nos primeiros anos da República brasileira devem ser analisados.

A presença dessas residências do tempo da poaia, e sua existência na memória coletiva, mostra a relação que a comunidade de poaieiros remanescente estabelece com o passado. A arquitetura vernácula revela os signos e os símbolos produzidos culturalmente. Histórias de assombrações, suas relações com a natureza, registradas na memória coletiva de alguns poaieiros ainda vivos, permite buscar elementos essenciais para compreender as representações culturais construídas nas localidades que estão à margem do Rio Paraguai.

O exercício de interpretação do patrimônio edificado permite a compreensão de outra temporalidade. A prática da interpretação evidencia os aspectos de inclusão e exclusão social, marcados pela encomia extrativista, voltada para o comércio internacional. A interpretação revela o significado da edificação e sua relação com determinado evento ou marco histórico. A resistência da edificação ao longo do tempo deve ser considerada para a compreensão da sequência temporal de seu surgimento e de outras formas de ocupação e funcionalidade.

Em síntese, depois de visitada, observada, identificada, comparada, contextualizada e interpretada, o professor deverá conduzir seu trabalho para a análise, estimulando a autonomia de pensamento dos alunos para que eles possam compreender que os indivíduos agem de acordo com a época e o lugar nos quais vivem, preservando ou transformando seus hábitos e condutas.

Para a análise o professor deve utilizar outras linguagens ampliando o conhecimento, tendo como referência imediata a arquitetura. A literatura, produções de memorialistas, a imprensa, objetos de museu dentre outras linguagens são fundamentais para ampliar o diálogo e análise da temática que se pretende estudar. Nesta perspectiva o ensino de história poderá cumprir uma de suas tarefas que é “permitir a construção de maneiras de olhar o mundo, de perceber o social, de entender a temporalidade e a vida humana” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2012, p.31).

Enfim, a arquitetura poaieira, patrimônio singular edificado no Centro Oeste brasileiro e ou, “as casas encostadas cochichando umas com as outras”, “a escola da mestra Lili,”, “O Palácio dos Arcos” e “o velho sobrado colonial / de cinco sacadas/de ferro forjado, poetizados por Cora Coralina9 servem de inspiração para a produção de aulas de história que fortaleça sujeitos para que defenda valores e que possam conviver com a diversidade. Sujeitos esses, que mesmo imersos no ciberespaço tecnológico, como propagadores de memes, sejam alertados nas aulas de história para respeitarem a alteridade e a diferença no convívio com opiniões diferentes na vida social.

Referências

ALBERTI, Verena. Fontes. IN: FERREIRA, Marieta de Moraes; OLIVEIRA, Margarida Maria Dias de. (coord.). Dicionário de Ensino de História. Rio de Janeiro: FGV, 2019. p.107 -112.

ÁLBUM GRÁFICO do Estado de Mato Grosso (EEUU do Brasil). Corumbá/Hamburgo, Ayala & Simon Editores, 1914.

ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Fazer defeitos nas memórias: para que servem o ensino e a escrita da história? In: GONÇALVES, Márcia de Almeida. Qual o valor da história hoje? Rio de Janeiro: Editora FGV, 2012.

BARROS, Manoel de. Memórias inventadas: as infâncias de Manoel de Barros, São Paulo: Planeta, 2008.

BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: Obras escolhidas I. São Paulo: Brasiliense, 1987.

BRASIL. MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. SECRETARIA DE EDUCAÇÃO BÁSICA. Base Nacional Comum Curricular, 2017. Disponível em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/wp-content/uploads/2018/04/BNCC_19mar2018_versaofinal.pdf. Acesso em 04 de jun. 2018.

CAIMI, Flávia Eloisa. Por que os alunos (não) aprendem História? Reflexões sobre ensino, aprendizagem e formação de professores de História. Tempo. Revista do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense. Niterói, v.11, nº 21, p. 27-42, jul/dez, 2006.

CATELLI JÚNIOR, Roberto. Temas e linguagens da história: ferramentas para a sala de aula no Ensino Médio. São Paulo: Scipione, 2009. (Coleção Pensamento e ação na sala de aula).

COLIN, Silvio. Uma introdução à Arquitetura. Rio de Janeiro: UAPÊ, 2000.

CORALINA, Cora. Poemas dos becos de Goiás e estórias mais. 23 ed. São Paulo: Global, 2006.

FREIRE, Júlio De Lamonica. Por uma poética popular da Arquitetura. Cuiabá: EdUFMT, 1997.

KERSTEN, Márcia Scholz de Andrade. Os rituais do tombamento e a escrita da História: bens tombados no Paraná entre 1938 – 1990. Curitiba: Editora UFPR, Imprensa Oficial do Paraná, 2000.

MIRANDA, Graci Ourives de. A poaia: um estudo em Barra do Bugres. Cuiabá: UFMT, 1983. (Monografia de Especialização em História e Historiografia de Mato Grosso).

SILVA, Kalina Vanderlei; SILVA, Maciel Henrique. Dicionário de conceitos históricos. São Paulo: Contexto, 2005.

SIQUEIRA, Elizabeth M. et al. O processo histórico de Mato Grosso. Cuiabá: Guaicurus, 1990.

WEIMER, Gunter. Arquitetura popular brasileira. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

Notas

1 A poaia é um arbusto da família da Rubiácea, seu nome científico é Cephaelis Ipecacuanha.
2 O desenho foi realizado durante o desenvolvimento do projeto de extensão “Barra do Bugres: história urbana em quadrinhos”, em 2011 desenvolvido na Universidade do Estado de Mato Grosso – UNEMAT.
3 O proprietário além de patrão de poaia, ele foi delegado de polícia e prefeito do município de Barra do Bugres – MT, no período de 31 janeiro de 1955 a 31 de janeiro de 1959.
4 Esta rua é em homenagem a chegada de Pedro Torquato Leite Rocha, explorador de poaia, e sua família em 1878, procedentes de Cuiabá, para fixarem-se junto à Barra do Rio Bugres.
5 Segundo Weimer (2005, p.265) é uma técnica universal, que se utiliza o tijolo cru, feito de argila compactada e, quase sempre, secado ao vento e/ ou ao sol. Curado dessa forma, adquire maior resistência e permite que seja assentado com argamassa de barro.
6 O peitoril é a altura do piso até a abertura inferior da janela e o pé direito é a dimensão entre o piso e o teto da edificação.
7 O Álbum Gráphico do Estado de Mato Grosso foi impresso em Hamburgo - Alemanha, com 532 páginas, organizado por comerciantes de Corumbá, cidade de Mato Grosso do Sul, no ano de 1914 e publicado com o objetivo de fazer propaganda das riquezas existentes em Mato Grosso na tentativa de eliminar os preconceitos de isolamento do Estado.
8 A ação medicinal da poaia é de: modificadora das secreções, cardíaca, emética, expectorante, sedativa, diaforética, hemostática, anti-hemorrágica, antiparasitária. Pode ser usada contra hemoptise, hematúria, leishmaniose, dispneia, difteria, envenenamento, catarro crônico intestinal, cólica, tenesmo, infeção intestinal, disenteria amebiana, irritação da garganta, irritação dos brônquios, irritação dos pulmões, febre gástrica e febre biliosa (SILVA, 1993).
9 As poesias citadas estão na obra de CORALINA, Cora. Poemas dos becos de Goiás e estórias mais. 23 ed. São Paulo: Global, 2006.

Autor notes

Carlos Edinei de Oliveira é doutor em Educação pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Docente do Programa de Pós-Graduação em Ensino de História (ProfHistória) da Universidade Estadual de Mato Grosso (UNEMAT).
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