Dossiê 15 - Sociedades em fronteiras: abordagens e perpectivas

Entre fronteiras e limbos, a interdisciplinaridade, o conhecimento tradicional e a micro-história

In between borders and limbs, interdisciplinarity, traditional knowledge and micro-history

Entre fronteras y limbos, la interdisciplinaridad, el conocimiento tradicional y la micro-historia

José Carlos dos Santos
Universidade Estadual do Oeste do Paraná – Unioeste, Brasil
Márcia Regina Ristow
Universidade Estadual do Oeste do Paraná - Unioeste, Brasil

Entre fronteiras e limbos, a interdisciplinaridade, o conhecimento tradicional e a micro-história

Fronteiras: Revista de História, vol. 21, núm. 37, pp. 12-38, 2019

Universidade Federal da Grande Dourados

Copyright Universidade Federal da Grande Dourados 2019

Recepção: 28 Maio 2019

Aprovação: 03 Junho 2019

Resumo: O século XIX delimitou corpos de conhecimento e os procedimentos para a pesquisa científica. Muitas especialidades, passados dois séculos de exercícios do saber, testaram seus dogmas à exaustão. Tais delimitações, criadas como fronteiras entre a própria linguagem e seus especialistas, também direcionaram uma prática de exclusão de conhecimentos ditos “simples”, ignóbeis, inomináveis pela razão. Foi uma prática de exclusão. Diferentemente, a interdisciplinaridade deve propor avançar sobre as trincheiras disciplinares por um lado e, por outro, inclusive resgatar o inominável. Conhecimentos tradicionais, que pertencem ao homem e não ao sujeito ou a uma instituição, são formas de resgatar um conhecimento complexo. Derrubar as fronteiras instituídas no século XIX é refletir sobre os limbos deixados pelo exercício profissional dos campos de pesquisa. A micro-história, como redução de escala e descrição densa, aponta um procedimento de convivência com outros saberes e favorece um clima de transposição das áreas disciplinares de pesquisa.

Palavras-chave: Interdisciplinar, Conhecimento tradicional, Fronteiras, Saberes.

Abstract: The nineteenth century delimited bodies of knowledge and procedures for scientific research. Many specialties, after two centuries of exercises of knowledge, tested their dogmas to exhaustion. Such delimitations, created as frontiers between language itself and its specialists, also directed a practice of exclusion of so-called "simple" knowledge, ignoble, unnameable by reason. It was a practice of exclusion. Differently, interdisciplinarity should propose moving forward on the disciplinary trenches on the one hand and, on the other, even rescuing the unspeakable. Traditional knowledge, which belongs to man and not to the subject or to an institution, are ways of recovering a complex knowledge. Overthrowing the boundaries instituted in the nineteenth century is to reflect on the limbs left by the professional practice of the fields of research. Microhistory, such as reduction of scale and dense description, points out a procedure of coexistence with other knowledge and favors a climate of transposition of the disciplinary areas of research.

Keywords: Interdisciplinary, Traditional knowledge, Borders, To know.

Resumen: El siglo XIX delimitó conocimientos y procedimientos para la investigación. Muchas especialidades, pasados dos siglos de ejercicio del saber, testaron sus dogmas exhaustivamente. Eso creó fronteras entre el lenguaje y sus especialistas, también direccionaron una práctica de exclusión de conocimientos dichos “simples”, innobles, innominables por la razón. Fue una práctica de exclusión. La interdisciplinaridad debe proponer avanzar las trincheras disciplinares por un lado y por otro, incluso rescatar el innominable. Conocimientos tradicionales, que pertenecen al hombre y no al sujeto o a una institución, son formas de rescatar un conocimiento complexo. Derribar las fronteras instituidas en el siglo XIX es reflejar sobre los limbos dejados por el ejercicio profesional de los campos de investigación. La microhistoria como reducción de la escala y descripción densa mira para un procedimiento de conveniencia con otros saberes y favorece un clima de transposición de las áreas de estudio de la investigación.

Palabras clave: Interdisciplinaridad, Conocimiento tradicional, Fronteras, Saberes.

Introdução

Não é pretensão aqui discutir a vida campesina e enveredar por uma reflexão rumo a uma história da morte pela arte. Se necessário fosse eleger uma espécie de ícone e dele fazer uma descrição de fios e rastros, para usar uma expressão de Carlo Ginzburg, esse ícone seria um conto sertanejo, uma enxada, trator, produtos químicos, solo, plantas, etc. Esses elementos pertencem diretamente a um universo cultural mais próximo do homem do campo porque fazem parte de práticas rotineiras bem cotidianas, enquanto a arte faz parte de uma escala maior (REVEL, 1988).

É proposital, no entanto, trazer a obra de Domenico Beccafumi1, um pintor provinciano da Itália do século XVI. Sacras e de influências medievais, suas produções retrataram momentos polêmicos do pensamento teológico cristão, como essa no título referida, sobre a possibilidade do limbo. Essa lembrança nos sobrevém num momento em que o Vaticano tem dado impulso a essa questão da existência ou não do limbo.

Jesus no limbo
1
Jesus no limbo
Fonte: Domenico Beccafumi’s (1530-1535)

Limbo e ciência

O discurso teológico, certamente, circula mais facilmente que as iconografias religiosas pelo meio agrário. As práticas religiosas no meio sertanejo foram e são fomentadas formando contextos de grandes diversidades culturais no Brasil (BRANDÃO, 1988). São contextos que nos remetem a pensar sobre existências várias de não lugares, criados pela difusão e pelo confronto de saberes. Afinal, algo que não é e que não aconteceu ainda pode ser visto também em outros lugares, além da teologia. A prática cotidiana é um local cercado pelo sagrado, um local em cujas tessituras as linguagens se interpenetram e se excluem, formando verdadeiros nós de conhecimento em função de respostas necessárias ao viver.

Analogicamente, penso no nosso métier de profissionais de todas as ciências, mas especialmente das ciências humanas, que fomos disciplinados a pensar desde o interior de tradições de pensamento. Com palavras ditas procuramos extrair “coisas” de objetos de pesquisa. Penso que, nesses lugares e procedimentos, limbos podem existir, construídos a partir de práticas tão naturalmente assimiladas pelo pesquisador.

A vida do homem campesino está involucrada pela religião. Há muitos mitos que são chamados para explicar a existência rural, no entanto, em nossas pesquisas, o tema do limbo não foi mencionado e tampouco seus rastros ficaram evidentes. Na escala de cima, da ciência, também não há muito espaço para pensar nesse invólucro. Há que se aplicar/revelar algo escondido nos objetos. A concepção de limbo será aqui usada como analogia para discutir uma fronteira estabelecida entre uma arte de fazer – o científico – e a arte de viver – o cotidiano, lá onde está o corpo do homem todo (HELLER, 1988). Voltaremos a este importante tópico mais ao final.

Falar de vida campesina é, antes de tudo, puxar tradições de pensamento, porque esse tema já pode ser considerado um velho tema. Academicamente, um tema “envelhecido” significa que foi extensivamente tematizado, dado a conhecimento. Haverá, inclusive, alguns profissionais que se identificarão como autores exclusivos e ou sapientes, especialistas mesmo, atribuindo tal poder a si mesmos, tal como uma metáfora do espelho freudiano, contemplando sua glória monumental. Como disse Sônia Regina Mendonça ao estudar alguns aspectos do ruralismo brasileiro:

[...] tradicionalmente definido como um mero movimento no nível das idéias, o ruralismo costuma ser apresentado pela bibliografia especializada como ideologia representativa de uma contra-reação dos grupos agrários à progressiva perda de seu poder e prestígio diante dos avanços dos interesses urbanos industriais sendo justamente por isso, associado a reacionarismos ou antiindustrialismos (MENDONÇA, 1997, p. 145).

Destaco a importante questão da ideologia, da representação de sujeitos em combate na história. Seu contrário, ou seja, o não combate está potencialmente enunciado nessa proposição de disputa, o que permite descrever a história como um desenrolar de domínios e de contradomínios ao infinito. Nessa tradição há sujeitos portadores de saber; há sujeitos sem saber ou de saber menor e quem sofre com o esmagamento da cultura superior. Sônia Mendonça propõe relativizar esse modelo historiográfico. Essas fronteiras, que foram construídas a partir das trincheiras políticas e científicas, precisam ser diluídas e transpassadas. As fronteiras “duras” do saber disciplinar impedem um avanço na compreensão da multiculturalidade dos temas de pesquisa.

É importante considerar tais tradições porque elas demonstram um exaustivo trabalho da construção historiográfica e fazem parte de uma história da arte – os constructos – e de uma história política.

O envelhecimento dos temas traz questões que necessariamente precisam ser pautadas. Uma primeira é a relação entre sujeito e objeto. Tradicionalmente, definiu-se que o objeto é um sujeito passivo de uma relação bipolar – alguém conhece e adquire um saber; algo é conhecido e vem sob a revelação de um conteúdo. Nessa relação de dois polos entre sujeito e objeto, o sujeito tece sobre, ou seja, produz o constructo acadêmico com base em convicções científicas advindas de sua área de especialidade. Dessa forma, mesmo se referindo a um mesmo objeto, como, por exemplo, camponês, pode-se dizer que há um saber médico sobre o ser camponês, sociológico, econômico, filosófico, histórico, e assim por diante. Trata-se de constructos que se definiram dentro de especialidades disciplinares que, segundo Boaventura de Sousa Santos, foram marcos do saber científico da modernidade. Nesses campos de conhecimento, o próprio saber fala as qualidades do sujeito. Trata-se de um exaustivo trabalho de quantificação universalizante que exigiu, de muitas áreas de conhecimento, a formação enciclopédica de descrições e de demonstrações como inquéritos de verdades. Consistiu num grande investimento que visava mapear e xrevelar leis universais dogmáticas e edificadoras de uma segurança individual e coletiva. Santos, in verbis, afirma:

O modelo de racionalidade que preside a ciência moderna institui-se a partir da revolução científica do século XVI e foi desenvolvido nos séculos seguintes basicamente no domínio das ciências naturais. Ainda que com alguns prenúncios do século XVIII, é só no século XIX que este modelo de racionalidade se estende às ciências emergentes. (SANTOS, 1988, p. 10).

É importante perceber que o grande arquétipo do fazer científico veio das ciências naturais. E, nesse sentido, vale lembrar o alerta de Foucault sobre o modelo inquisitorial dessas ciências, que migraram do direito para as ciências naturais e, destas, para as ciências humanas.

Esse procedimento, ainda seguindo Sousa Santos, consubstanciou-se em um fazer hermético, excludente. Disse o autor:

Sendo um modelo global, a nova racionalidade científica é também um modelo totalitário, na medida em que nega o caráter racional a todas as formas de conhecimento que se não pautarem pelos seus princípios epistemológicos e pelas suas regras metodológicas (SANTOS, 1988, p. 11).

Um totalitarismo metodológico facilitou o isolamento epistemológico, entrincheirando pesquisa e pesquisador em nichos isolados e concorrenciais. Fundou-se um procedimento de produzir verdades dogmáticas em enraizamentos criados desde Descartes e que evoluiu em formas as mais variadas de produção de conhecimento sobre os objetos e com a finalidade de interferências sobre esses mesmos objetos. Foram estabelecidos jeitos de fazer que obedeceram a determinadas regras herméticas (CERTEAU, 1994), e de vontades de poder (FOUCAULT, 2009). Criou-se um hábito de ciência explicativa que usava conceitos fundadores e universais para obter alguma revelação, algum segredo ainda não conhecido. Assim, explorados em uma perspectiva de hierarquia, os homens do campo foram representados por essas construções como “desprovidos de consciência histórica”, “explorados ou vitimados”, “inábeis”, “ludibriados”. Não faltam aqueles que também dizem que são “espertos”, “beneficiários”, “autônomos”, etc.

Esse enraizamento criou uma espécie de aprisionamento do objeto no interior de disciplinas que reivindicavam seu campo de atuação política em relação a outros. Trincheiras de um conflito de exclusividades foram erigidas em institutos, em academias, em correntes de pensamento, em universidades e, por último, em ONGs, em associações e em sindicatos. Esse enraizamento, a princípio, poderia demonstrar uma superficial preocupação ética, mas, no fundo, fazia um jogo da identidade profissional e seu exercício no mercado de trabalho, no mercado editorial, enfim, no mercado de consumo. Na base desse jogo de representações estava o utilitarismo de profissões criadas em trincheiras que definiam, ao mesmo tempo, modelos de intervenção social. Com grande impetuosidade científica, essas trincheiras/profissões chamaram para a sua seara o domínio do saber e o poder de revelar, de descobrir e de descortinar conhecimentos/verdades involucradas em objetos de estudo. Nunca historiadores se opuseram tanto aos filósofos e estes aos sociólogos e aos antropólogos − isso considerando somente as ciências humanas, sem, portanto, entrar em outros campos científicos. Mesmo assim, um combate mais cruel foi traçado entre as chamadas ciências duras: física, química, biologia, matemática, geometria, entre outras. A rivalidade entre ciências humanas e aplicadas ganhou o cenário acadêmico das últimas décadas (SANTOS, 1988).

Essas disputas entre as sapiências foram e são travadas longe de realidades vivenciais com, inclusive, um distanciamento significativo entre representações e realidade social. Surgiram teorias que ganharam força no interior da linguagem e que tramaram verdadeiras disputas conceituais sem sequer tocar o nível de realidade fática. O mito da caverna cada vez mais se solidifica enquanto mito, representações linguísticas de movimento quase infinito.

Conhecer uma determinada realidade, segundo essa prática científica, seria investir grandes esforços para aproximar a ciência (como mito) da realidade. Muitas conclusões são feitas no sentido de constatar a “resistência” da realidade em conformar-se aos mitos. A realidade se mostra rebelde. No caso da cultura agrária, porque seus arquétipos estão “separados de sua consciência”, ou são “intransigentes demais” ou “ingênuos em demasia” e não compreendem o óbvio.

A constatação dessa intransigência do objeto talvez seja a grande novidade da pós-modernidade. Aliás, é oportuno lembrar algumas palavras de Nietzsche sobre a filosofia in actu: o inatural ou o intempestivo: conhecemos como história aquilo que é visível e nos cerca. Isso, pois, não é a história, mas aquilo que está na eminência de ser e que pertence ao indivíduo e não a essa história. Parafraseando Nietzsche, Deleuze e Guatarri comentam: "[...] há uma história que nos cerca e nos limita; não diz o que somos, mas aquilo que estamos em vias de diferir; não estabelece nossa identidade, mas dissipa em proveito do outro que somos” (1972, p. 119). Todo esse ordenamento científico cerca, portanto, lugares cotidianos. Não é um ordenamento suficiente para dobrar os corpos, porém exerce sobre eles um significativo poder coercitivo. A convivência ritual, os motivos do viver é que irão determinar rumos para o confronto.

No intempestivo de Nietzsche, o sujeito vive em outra história. Ele é justamente aquilo que escapa à história. Aqui reside então, se Nietzsche tem razão, um limbo entre ciência e sujeito. A dureza metodológica e política da ciência moderna, o enquadramento disciplinar e metodológico, não resistiu a algo considerado elementar nessa discussão toda: a existência do objeto. E, mais que isso, o objeto não é fixo, passivo; ele é ativo, move-se ao invés de ser estático. E, assim sendo, ele não “cabe” no interior de um conceito ou de uma tradição. A disciplinaridade então é posta em questão e aponta caminhos possíveis para uma prática holística de compreensão que alie, além dos saberes acadêmicos, outros, ligados a centros de funcionamento de racionalidades extracientíficas − racionalidades que não devem somente pertencer aos sábios, mas, sobretudo, aos ignorantes.

Numa perspectiva interdisciplinar, é preciso abandonar as fronteiras determinadas das ciências – e seus vários campos de conhecimento – e avançar para o rumo do desconhecido. Essa perspectiva pode encontrar, compreender e sobreviver com outros modelos de conhecimento produzidos mediante outras epistemologias. O limbo criado pela ciência entre sua técnica e a realidade vivencial é um local de criação, de novidades, de belezas estéticas outras. Possivelmente lá residem histórias verdadeiras com outras cosmogonias que dirigem práticas sociais.

Interdisciplinar é também um refazer profundo nos procedimentos de pesquisa. É preciso olhar a história para além da história visível: aquela que já é vista porque se instituiu em forma de políticas, instituições, normas, enfim. O além da história, são os homens criando saberes e fazendo-os responder por necessidades vivenciais cotidianas, ou seja, não se trata mais de olhar a realidade a partir de uma visão de ciência, descrever determinadas ações dentre racionalidades universalizantes e ou ideológicas. É preciso enxergar e colocar, ao lado dessa ciência, muitas outras em formação.

Interdisciplinar

Romper com tradições não é tarefa fácil. Não se trata apenas de uma tomada de decisão. Muito pelo contrário, porque estaremos falando de anos de produção de ciência e tecnologia, de processos e de cadeias produtivas, de urbanidades, de aldeamentos culturais, de relacionamentos com outros seres vivos e com os recursos naturais. Enfim, estamos falando do ethos humano. Trata-se de uma história do conhecer, mas se faz necessário pensar numa visão multidisciplinar e transdisciplinar.

Diferentemente do que se possa pensar, não se trata somente de uma democratização de ferramentas, como se tem visto ser proposto mediante desses conceitos. Também não se trata de ampliar a compreensão das disciplinas sobre seus próprios objetos. Ambas essas formas apenas reformariam as bases disciplinares de maneira superficial e com um rumo de maior eficiência nas suas ferramentas de análise. Ao se tratar apenas de democratização e de ampliação de visão, o limbo existente entre conhecimento e corpo continuaria a subsistir.

Por interdisciplinar deveríamos entender o reencontro entre duas bordas separadas pela razão: o conhecimento e o corpo ou o conhecimento e a realidade. Interdisciplinaridade deve ser o encontro de níveis de saberes diferentes produzidos em resposta a questões emergentes: o saber disciplinar responde às questões históricas enraizadas em instituições, em filosofias, em técnicas. São instrumentos que se esvaziaram de humanidade. No seu extremo, é o pós-história, o bafo quente da experiência, o virtus (potência), aquele lugar em que os sujeitos teimam em sobreviver produzindo suas experiências para além ou para aquém dos instrumentos da história.

Os sábios e os ignorantes deverão, numa visão interdisciplinar, confrontar os seus saberes, não em uma perspectiva de competição, exclusão e encarceramento, mas de completude e de complexidade. Ser interdisciplinar consiste em abandonar certas tradições e alargar a visão da experiência humana. Os sábios deverão confessar-se diante do ignorante e reconhecer-se como o não único do saber. É preciso quebrar os grilhões de um hábito de pensar dominante e dominador mediante a quebra da percepção da passividade do sujeito ou objeto do conhecimento.

Não é possível cobrir a cultura com um novo olhar usando cobertores velhos. A forma inquisitorial de construção da ciência moderna já não serve mais para responder às desafiadoras questões do presente − este presente que sempre existiu no limbo dos instrumentos explicativos que estão se mostrando cada vez mais pertinentes. São instrumentos que desejam sair do miasma ou simplesmente desejam presentificar-se. O virtus pode até ser nominado com nomes blasfemos de violência, violações, fome, selvageria, malfeitores, desonestidades, entre muitos outros, mas é um momento da percepção de uma realidade mais extensa e inclusiva, ou seja, momento de acerto de contas entre ciência e razão, em que determinados valores eleitos deverão ser postos em tribunais. Desse encontro se espera uma reconciliação entre homem e existência.

Interdisciplinaridade deve ser um movimento que favoreça o desfazer-se de modelos e de suas fantasmagorias e superarem-se a si próprios, através da transvaloração de todos os seus valores. Essas são lições que os objetos ou sujeitos de pesquisa têm oferecido à ciência. A cegueira científica (MORIN, 1988) não permite ao olho perceber esse nível. E de nada adianta trazer outro sábio para olhar de uma perspectiva diferente. Será apenas outro cego querendo adivinhar mediante uso de seus instrumentos.

A interdisciplinaridade tem como fundamento a quebra do fundamento e do isolamento conceitual das áreas de conhecimento mediante o emprego do diálogo com outras fontes de saber. De fundo, não se trata de somente compreender o objeto "cultura agrária" de forma multifocada, mas de, sobretudo, reformar as formas do pensar compartimentado, isolado, e recuperar um sujeito ativo exterior ao círculo acadêmico como produtor de conhecimento

Campo ou cidade, os modelos produtivos os reorganizam para focar no desenvolvimento. Tanto um quanto outro são fontes de observação in loco das experiências do fazer rotineiro. Partimos do pressuposto foucaultiano de que uma fonte de saber disciplinadora propõe, calcula, educa, normatiza uma série de ações cuja finalidade está fundada e fundamentada num princípio de verdade, de segurança, de aplicabilidade. Tal saber pode identificar a rotulagem de produtos agrotóxicos, as bulas, as orientações, a divulgação das composições químicas, recomendações do uso correto, a descrição dos efeitos colaterais, etc., porém, pelo mesmo viés foucaultiano, é possível perceber a prática de apropriação do conhecimento do sujeito agricultor que não ocorrerá da mesma forma, da mesma medida e com o mesmo fundamento do saber técnico descrito nas embalagens. Na mesma medida é compreensível que a jovem mãe não confie na parteira, em chás e em benzimentos para ter um bom parto. Prefere o hospital, a orientação médica e os medicamentos químicos; um bebê recém-nascido, num ambiente urbano de grande capital, controla o tempo de dormir e de se alimentar, conforme o ritmo de trabalho dos pais, o movimento de aviões no aeroporto e ou a buzina do motorista desavisado.

Uma metodologia compreensiva dará conta de demonstrar que o consuetudinário é ainda uma forma muito eficaz de os sujeitos históricos organizarem a vida – social, produtiva, reprodutiva −, apesar dessa maciça tecnologia produtiva. Ao lerem as indicações técnicas dos produtos modernos da agricultura não se despojam de toda a sua tradição, sua oralidade, seus trejeitos; as avós ainda orientam a jovem mãe; o bebê recebe carinho, compreensão e orientações da “tata” e dos pais. Ao contrário, eles interpretam a vida a partir desses elementos formadores. Trata-se, no dizer de Michel de Certeau (1995), de uma “destruição” do saber eficiente para criar a eficiência do saber na ordem do dia a dia.

Saberes, jogos de escalas e micro-história

O conhecimento científico é produzido no interior de relações tensas. Desde o momento em que o saber se definiu como ciência, mirou-se uma objetividade e praticidade que responderia a várias necessidades sociais. Ora como ordenador de sistemas de controle, ora como técnicas produtivas e mesmo como representações filosóficas ou teológicas, o “conhecimento científico” passou a ser uma linguagem recitada em muitos recônditos da vida cotidiana em que urbanidades, higienizações e assepsias extinguiam os limbos, as subvidas que resistiam em se alinharem a uma vida racional, moderna.

A/s linguagem/ns da/s ciência/s teve/tiveram essa investida como a sua grande utopia. O corpo transformado em linguagem não passa de lembrança da morte num tempo transformado em máquina de esquecimento. Um corpo linguístico se opõe ao corpo do homem. A sua descrição – como uma imagem de obra de arte – determina a sua morte. O corpo é a própria experiência do limbo que São Tomás já interpretava como tempo de abandono. No limbo, o que resta ao humano é o espectro do símbolo, é viver do formalismo, é ser imitação de si mesmo. Esse espectro é a história: sua negação e sua construção, ambas ao mesmo tempo.

Essa tendência se fortaleceu justamente em função do modo como cada disciplina focou esse objeto, pensando-o como meio de racionalidade próprio de uma área de saber, quase sempre de forma isolada. Esse isolamento conceitual no interior dos campos de saber, fundados nessa forma de tratamento, não favoreceu uma visão holística do objeto e, muito ao contrário, colocou-o no interior das tradições. Encoberto pela narrativa preconceitual de áreas “moles” ou áreas “duras”, esse sujeito/objeto permaneceu no limbo2, caracterizado ora como passivo diante de determinações de grande escala – o trabalho, o capitalismo, a globalização, a vontade estatal –, ora como um Jeca Tatu3, inexpressivo, destituído de consciência histórica. Trata-se de um controle discursivo no interior da linguagem, mas que não ocorre apenas no nível de representações. Lembremos que discursos são práticas sociais (FOUCAULT, 1999).

É o estatuto da relação que só pode ser compreendido por essa possível "ligação dentro do limbo". A relação é um intervalo onde toda distinção entre humano e ciência desaparece. Relação de controle, de ódio, de domesticação (NIETZSCHE, 1988). Nessa relação, a linguagem do homem pouco ou nada serve. Ela é “humana demais”. Limbo, pode-se dizer, é o vazio que conjuga ciência e homem numa eterna impossibilidade de encontro, enquanto, ao mesmo tempo, permite uma relação, mas uma relação de exclusão. Limbo é o lugar de uma relação perdida, no espaço e no tempo, e cuja marca material define a linguagem como mero miasma. Nela os saberes ficam em um “intervalo” aguardando a passagem para outros mundos. É nesse sentido que o barqueiro Caronte aparecerá como aquele que “liga” os dois bordos dessas fronteiras.

O Homem, como ser humano, é um habitante do limbo existente entre linguagem e humanidade. Os dois se encontram no mesmo lugar, apenas separados por uma operação tornada miasma a transitar entre eles. Por sua praticidade e eficiência, não há um corpo mais parecido com o humano. O Homem humano encontra-se perdido entre a cultura e a natureza, dividido entre encontrar uma morada de um lado ou do outro da fronteira. Freudianamente, pode-se dizer que é uma fronteira do homem em relação a si mesmo, mas também em relação ao seu outro. Muitos outros, se pensarmos em “raças”, “cor”, língua, sexo, idade, nacionalidades.

Essa cultura deu-nos a ciência. O isolamento em modelos ou em áreas faz parte de uma história interna do saber (FOUCAULT, 1979). O fundamento de uma nova área de conhecimento tinha como pressuposto a delimitação de um campo de atuação, delimitação fundamentada em um objeto e em um método produtor de resultados. Essa estória está, ao mesmo tempo, relacionada com a constituição dos modelos gestores. A economia, entendida como a arte de gerir um Estado e uma família, criou laços duradouros numa relação ascendente descendente do indivíduo ao todo e vice-versa. A identidade nacional − nação, pátria − passou a ser pensada como diluição do homem e fortalecimento de modelos estéticos e do Estado. Em outras palavras, gerir era pensar economicamente a pessoa e o Estado; pensar ciência era pensar a economia, o bem-estar, a riqueza; uma linguagem do corpo para constituir corpos, como descrito por Alcir Lenharo (1986).

A aplicabilidade de recursos intelectuais – conceitual/tecnológico – esteve preponderantemente voltada para a compreensão e a modificação de recursos naturais. Da medicina à matemática, passando pelas ciências humanas, o corpus de conhecimento dessas áreas do saber focou na compreensão da natureza humana, do solo, da água, do ar, dos processos. Havia, na base, um interesse particular que povoava o imaginário do cientista romântico: desvendar a natureza, descobrir leis universais, os sinais de Deus ou demonstrar sua completa ausência, colocando-o também numa espécie de limbo.

A modernidade das ciências, iniciada em Descartes, vai ter essa marca processual. De modo especial a química, a física e a biologia se alojam no interior de diversas especialidades do saber, criando modelos de pensar e ferramentas para a solidificação desses procedimentos de conhecer e intervir. Não menos importantes, ao lado deles, estão outros processos de saber, como o direito, a filosofia e a sociologia, que também investem na compreensão da natureza humana. É importante ressaltar que a formação dessas grandes áreas de conhecimento teve como pressuposto o seu isolamento, a criação de “objetos específicos” de saber.

Nossos hábitos relativos ao saber científico estão profundamente enraizados nessa forma de compreensão. Esse saber é nosso outro. Não se trata apenas, hoje, de dizer que é questão de “tomada de consciência”. Como ser social, a antropologização foi naturalizada mediante práticas sociais (FOUCAULT, 1999) e através de uma ritualização estabelecida por entre agentes e leigos (BOURDIEU, 1974). A modificação dessa natureza, no fundo, corresponde a uma profunda modificação nas estruturas mentais. Leigos e agentes se mobilizam por entre conceitos, instituições, rituais. Nos chamados processos produtivos – saber, objetos, objetivos, lucros, produtos, marketing, qualidade, satisfação, etc. – se entrelaçam criando ISOs, concorrências, busca tecnológica e outros. Trata-se de um frenesi que acompanha toda a ordem cotidiana do produtor ao consumidor.

A ironia cartesiana nos envolve em uma linguagem perversa. É quase impossível fugir da incorporação dos preconceitos, mas reconhecemos que há fronteiras estabelecidas entre práticas de pesquisa, os saberes disciplinares e os objetos ou sujeitos de pesquisa. Entre o ato de conhecer segundo as tradições e os sujeitos a serem conhecidos há limbos, ou seja, há limbos por entre a fricção da teoria e a realidade do homem. Nenhum desses artefatos teve tanta importância quanto a escrita como formas de construção da história (CERTEAU, 1994). A escrita, por outro lado, registra atos de significar, mas, fechada em tradições, torna-se hermética e refratária a sentimentos não científicos.

Mesmo assim, porém, como disse Jacques Revel, se reduzida a escala e considerando um ir e vir entre o micro e o macro, entre a microanálise de particularidades históricas como texto e um universo maior como contexto, esses atos de significar podem revelar alguma experiência imaterial − para usar um termo de Levi −: uma comunidade, um grupo, biografias, enfim, experiências acontecendo ao lado, acima, abaixo ou ignorando completamente os recursos “racionais” dos registros e do controle.

Michel de Certeau apontou, como sendo o grande sinal de crise na história, o próprio método utilizado para descrevê-la. A micro-história, proposta no auge dos Annales, foi um caminho sugestivo para a fuga desse tipo de percalços da produção do conhecimento histórico.

Texto e contexto também foram retratados, no Brasil, como relação de um todo e suas partes, para além de determinismos. Sandra Pesavento afirmou que “[...] a micro-história [...] busca ver no local uma porta de entrada ou janela para resgatar o universal e se propõe, como linha de frente, a atacar, exatamente, o resgate desta articulação entre o todo e a parte” (2005, p. 232). A autora entendia ainda que “[...] é no nível micro que se surpreendem melhor os fenômenos mais gerais” (2005, p. 232).

Jacques Revel, refutando o argumento de que o micro perde a significância em relação ao geral e, inclusive, comprometeria o trabalho do historiador que sempre esteve ligado à longa duração, reduzindo-o às dimensões estruturais e até mesmo do inconsciente, afirmou: “Os trabalhos dos micro-historiadores exibem deliberadamente uma dimensão experimental” (REVEL, 1998, p. 20). Com isso afirmou, em concordância com Ginzburg (1989), que a micro-história é um trabalho exaustivo da busca pela documentação, seja ela de qual natureza for. Nesse aspecto, é pertinente lembrar as palavras de Vainfas: “[...] a narrativa na micro-história [...] demonstram as fronteiras que separam da narrativa ficcional, uma vez que, apesar da dimensão conjectural e intuitiva presente nesses textos, eles sempre resultam de pesquisas documentais e reconstroem tramas históricas muito concretas" (2002, p. 125).

Vainfas analisa as pesquisas de Natalie Zenon Davis, Carlo Ginzburg, Giovanni Levi, Darton, Lynn Hunt, dentre outros, com a finalidade de esclarecer conceitos e de inventariar a trajetória dos Annales, mas com o intuito de discutir a relação do regional com o global, do texto e do contexto e, sobretudo, da relação do pesquisador com o seu método de pesquisa, tornado discurso corrente pelo fazer científico. Sobre o método de Ginzburg − em especial o método Morelli –, Vainfas afirmou:

Carlo Ginzburg propôs, neste artigo, com derivação dessas comparações, a história como ciência do particular, do caso irrepetível e único, e não como ciência do tipo galineano, construída a partir de abstrações e conceitos gerais. Disso resulta uma concepção de história como essencialmente indutiva, como prática de pesquisa, e não baseada em modelos hipotético-dedutivos, calcadas na exaustiva pesquisa documental, na erudição e no rigor factual. (VAINFAS, 2002, p. 110).

Existe, portanto, uma perspectiva de que é necessário “historiografar” a produção e o exercício dos profissionais de todas as ciências, de modo especial das ciências humanas e sociais. E assim, novamente, retorna-se à questão da relação entre objeto e sua representação. A ruptura da redução de escala favorece a percepção de uma história para além do método, se descritiva em seus pormenores etnográficos, no detalhe. Por isso o conteúdo dessa história há que ser demonstrado na sua diacronia/sincronia, explicitando como a narrativa maior ecoa por entre a vida cotidiana.

Existe, portanto, uma perspectiva de que é necessário “historiografar” a produção e o exercício dos profissionais de todas as ciências, de modo especial das ciências humanas e sociais. E assim, novamente, retorna-se à questão da relação entre objeto e sua representação. A ruptura da redução de escala favorece a percepção de uma história para além do método, se descritiva em seus pormenores etnográficos, no detalhe. Por isso o conteúdo dessa história há que ser demonstrado na sua diacronia/sincronia, explicitando como a narrativa maior ecoa por entre a vida cotidiana.

A micro-história busca temas que miram as fontes, faz exaustivas descrições, localizando o inusitado, dentre outros, tornando-os visíveis através da narrativa. Esses são os focos cujo feixe de luz deve visibilizar. E Revel emenda: “[...] os trabalhos dos micro-historiadores exibem deliberadamente uma dimensão experimental” (REVEL, 1998, p. 20). Retomando o renomado texto de Ronaldo Vainfas (2002, p. 106), os micro-historiadores se ocupam com os “pequenos enredos” ou “enredos minúsculos” (p. 128). Obviamente são enredos minúsculos não no sentido da insignificância, mas da tradição historiográfica, que, centrada na grande história – nas estruturas, na longa duração ou no inconsciente −, não obteve a percepção dos importantes limbos. Reduzir a escala é fortalecer uma perspectiva interdisciplinar, na forma que estamos apontando. Em primeiro lugar, essa redução favorece a interdicisplinaridade porque vai carecer de uma discussão metodológica e, em segundo, porque indica as formas de encontro com outros saberes, aqueles ligados a tradições através das densas descrições.

Reduzir a escala é fortalecer uma perspectiva interdisciplinar, na forma que estamos apontando. Em primeiro lugar, essa redução favorece a interdicisplinaridade porque vai carecer de uma discussão metodológica e, em segundo, porque indica as formas de encontro com outros saberes, aqueles ligados a tradições através das densas descrições.

Gênesis e o enterro da Bíblia

Há um costume de considerar começos como gênesis. A busca de origens é um hábito ocidentalizado e disseminado pelas práticas de pesquisa segundo determinadas áreas de conhecimento. Trata-se de uma prática que esconde seu verdadeiro caráter de construção. Fala-se origem para não falar construção. Esse é o fundamento verdadeiro da epistemologia moderna, contudo em saberes mais livres há, também, nichos de epistemologias que se formam espontaneamente em resposta a necessidades vitais. Eis aí pequenos começos. Em todos os espaços, diálogos pequenos acontecem ao lado dos ruidosos e vitalizados gênesis modernos.

Em pequenas comunidades rurais, a observação atenta, uma fala, um gesto, um objeto, um caminho e a resolução de problemas demonstram fagulhas de espontaneidade. Não se trata somente de conhecimentos tradicionais medicinais, observações da lua e das plantas. Isso significa, sim, um saber e sua oposição às racionalidades profissionais; mais que isso, são saberes e trazem, ao seu lado, outros modos de fazer.

Em uma pequena comunidade rural no Paraná, após alguns anos de pesquisas4, encontramos dois relatos curiosos em relação a uma religiosidade do dia a dia: havia uma forma de comunicação entre a vida e a morte e que, se feitos determinados ritos, o morto poderia ter uma boa passagem. O relato afirmava que havia a necessidade de estabelecer um diálogo entre a forma de vida, o cruzamento dos mundos e a vida no paraíso ou no purgatório.

Adentramos a comunidade mediante um acontecimento nada comum: a esposa e a mãe do pastor, Sr. A, cometeram suicídio ao mesmo tempo. Uma ao lado da outra, ficaram penduradas por cordas amarradas no esteio da casa, enquanto o marido e genro estava cumprindo sua agenda pastoral. Foi alertado por amigos e parentes sobre o ocorrido, antes ainda de chegar em casa. Retorna. Uma multidão o aguarda. Os corpos já devidamente arrumados segundo o hábito funeral. Apenas as fotos que puderam ser vistas posteriormente anexadas ao processo da polícia civil puderam testemunhar as cordas, o esteio da casa, a cozinha. O ambiente já estava devidamente “arrumado” para seu retorno.

Sóbrio, preside o funeral da esposa e da sogra (havia entendido que era sua mãe). No púlpito, o pastor Sr. A5 assim afirma sobre a prática do enforcamento: − Como será que Satanás talvez tenha dito? Como ele fez nos dias de Jó? Você sabe, Deus não pode tirar nossas vidas. Satanás tem que fazer isso. Nós somos apenas entregues a Satanás.

Embora seja uma releitura – o texto de Jô menciona a tentação sofrida pelo homem e não o poder de satanás de decidir sobre a vida e a morte – o pastor se refere ao Livro de Jô, 1-6, onde se trava um diálogo entre Deus e Satanás. Deus admira as virtudes de Jó. Satanás o põe à prova causando destruições à sua volta, criando situações favoráveis à blasfêmia do homem contra Deus, mas Jó resiste, rasga as vestes – gesto de grande simbolismo nos textos sagrados – e bendiz a Deus: − Nu saí do ventre de minha mãe e nu tornarei para lá; o SENHOR o deu, e o SENHOR o tomou: bendito seja o nome do SENHOR (Jô, 1:21).

O pastor, Sr. A., insere elementos da vida ordinária que não estão presentes no texto original. É o seu trabalho de tecelão, mas ele tinha razões mais próximas com o tema do suicídio. Era uma relação incômoda não somente porque a doutrina que defendia o colocava numa posição de Cruzado em combate infrene nas ações de expulsão de satanás da vida rural local. Ela tinha passado pela experiência “doméstica” de enfrentamento, quando sua sogra e esposa, única filha, uma ao lado da outra, resolveram que se enforcariam ao mesmo tempo.

A sua sobriedade permite cruzar um diálogo entre os viventes e os mortos. Ele cria uma ponte entre duas fronteiras ao lembrar de Jó. Primeiro, porque teria sido satanás que seduziu e vitimou as mulheres e aquela comunidade precisava presenciar essa possibilidade. Segundo, porque Jó foi fiel a Deus até no momento de terríveis provações. Sua sobriedade fala de si mesmo e de sua comunidade. Fala de afetividade, de fé real, o inominável pela ciência.

Talvez por essa razão ele insira elementos exteriores ao texto sagrado. Ele também “assume” o lugar de Jó: − Satanás, sabendo disso, sabendo que o tempo delas tinha chegado, sabia que iam partir, disse a Deus: “Tu sabes, ela tem um rapaz que é pregador, e filhos que professam ser cristãos. Deixe-me simplesmente torturá-las por um pouco, eu farei que todos eles Te neguem”. Há aqui a troca de mundos. O sujeito pastor funde-se com o mito. Ele passou a ser tentado pelo próprio satanás. A tentação também é extensiva aos outros parentes, seus irmãos.

Há, porém, uma grande racionalidade nessa estratégia de discurso. Satanás é um personagem que terá um significado especial na trama da morte de seus familiares. É preciso lembrarmos que, pela teologia, o suicídio é um pecado mortal, mas também não é menos reprovado nas práticas cotidianas: “[...] o suicídio não é só a malvadeza do mal; é também a fraqueza humana... é o homem sem caráter que se deixou levar pela luxúria; o álcool, a bebedeira, mulheres; é a perda de caráter... então o fim é esse mesmo!”6 Novamente temos aqui o confronto das escalas.

Em se tratando de uma fala teologal e dita pelo pastor, é preciso ir ainda mais fundo na sua subjetividade. O personagem do suicídio, nos textos sagrados, está profundamente marcado pelo estigma da traição. O suicida traiu não somente a Jesus no Horto das Oliveiras, entregando-o ao martírio, pois trai também todo o plano mitológico de Deus e seu contrato com o homem de lhe conceder vida e felicidade eterna. Na fala cotidiana, essa traição assume figuras de um social que assola a vida rotineira.

É na tempestividade entre a linguagem teológica e a tradição que a mulher e sogra lhe deram que se encontra o Sr. A. − Jó ou Judas. Teologia ou tradição. Novamente há a necessidade de estabelecer pontes entre estes dois bordos.

Há que se dar duas soluções ao caso. Uma de intimidade, de consciência, de integridade de fé: Deus está me testando como testou a Jó? Mas há outra, não menos importante: a social. Como podem pessoas de fé ceder à fornicação com satanás e cair na traição da falta de caráter?

Então nosso personagem, homem de fé, encontra uma saída tática: − “Quando elas partiram, coloquei em cada caixão uma bíblia nova. Com este gesto, lembrei de Mateus 9”.

Há, aqui, dois grandes elementos para entender a saída do contexto angustiante. Primeiro: Há, nas entrelinhas, uma menção ao mito da passagem. Esse mito é relembrado de muitas formas; em regra geral, pelo discurso racionalizado da fé, ele é mencionado pelo arrependimento, pela possibilidade de salvação. A passagem foi uma forte imagem da cultura greco-romana. Dizia-se que o rio mitológico Aqueronte (que se localiza no Épiro, região do noroeste da Grécia) era o "rio do infortúnio" e acreditava-se que fosse um afluente do rio Styx (Estige), este localizado no mundo dos mortos. Nele se encontrava Caronte, o barqueiro que leva as almas recém-chegadas ao outro lado do rio, às portas do Hades, onde o Cérbero os aguardava.

Afirmava-se que, antes de chegar ao Hades, os mortos pegam a balsa de Caronte (o barqueiro do inferno) para atravessar o rio Aqueronte (das dores). Caronte cobra moedas para fazer a passagem. Era costume grego colocar uma moeda, chamada óbolo, sob a língua do cadáver, para pagar Caronte pela viagem. Se a alma não pudesse pagar, ficaria forçadamente na margem do Aqueronte para toda a eternidade, e os gregos temiam que pudesse regressar para perturbar os vivos.

A bíblia oferecida pelo pastor parece ser o óbolo, uma troca com o barqueiro. Uma forma de amenizar o peso social das pressões, mas também uma forma de reafirmar sua fé. Uma forma de dar início e fundamento às exéquias dos corpos condenados. Condenados pela teologia, como se verá a seguir, mas também condenados pela linguagem mais próxima, dos homens. Há que ser dito que, aos condenados, por muito tempo, não foi permitido enterro no mesmo cemitério e nem mesmo o “corpo presente” poderia receber ritual dentro dos templos. Somente em cerimônias restritas, porque representava atos socialmente reprováveis.

Com o gesto do pastor, o funeral teve lugar no templo. Houve comoção geral: “As pessoas se compadeceram de nossa situação de provação”. O ato de colocar o óbolo não foi uma atitude “reservada”. Disse que, da mesma forma que nos revelou, também “[...] disse à comunidade porque todos sabíamos que satanás foi mais forte”. Nessa expressão fica implícito, mas ele não disse textualmente: elas foram mais fracas. Daí por que Jó teve que ser mais forte, ou seja, ele próprio, pastor.

Em Mateus há um franco diálogo entre as trevas e Deus misericordioso que perdoa os pecados e ressuscita mortos, mas há também uma menção da danação onde fogo e enxofre demarcam o território de satanás e o sofrimento eterno do condenado: “Todos aqueles que praticarem a iniqüidade serão lançados no lago de fogo e enxofre, onde haverá choro e ranger de dentes” (Mat. 13:42). E, no capítulo 25, ainda está escrito em Mateus: “Apartai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno, preparado para o Diabo e seus anjos” (Mat. 25:41).

Tal como o céu, o inferno e o lago de fogo e enxofre são lugares quase reais na sua narrativa. Há uma transposição de realidades do mito para a vida comunitária e a sua situação presente. Ele parece desafiar a afirmação de Lucas, aquela de que entre o inferno e o céu existe um abismo tal que é impossível de transpor (Lucas 16:26). No texto de Lucas – a parábola do rico e de Lázaro, o inferno é um lugar de tormento, de vergonha e de desprezo eterno (Daniel 12:2), onde existe separação absoluta e eterna de Deus e o desprezo eterno de todos os que lá se encontram.

O inferno é o local destituído da presença de Deus, porém não lhe está oculto, sendo que, no cumprir das profecias, esse inferno será lançado no lago que arde com fogo e enxofre. Para católicos e protestantes, após a morte, a alma, uma vez no inferno, não poderá mais sair, assim como em relação ao paraíso (céu), não existindo forma de cruzar a fronteira que separa esses dois locais.

O inferno é o local destituído da presença de Deus, porém não lhe está oculto, sendo que, no cumprir das profecias, esse inferno será lançado no lago que arde com fogo e enxofre. Para católicos e protestantes, após a morte, a alma, uma vez no inferno, não poderá mais sair, assim como em relação ao paraíso (céu), não existindo forma de cruzar a fronteira que separa esses dois locais.

Diferentemente, porém, as protegidas do pastor não podem estar na danação eterna. Houve uma negociação com o barqueiro que parece ter aceitado o óbolo. Ao invés de moedas, a bíblia. Uma tentativa desesperada, mas uma mensagem clara: a palavra salva − mensagem essa que foi muito bem recepcionada pelo público presente na celebração do enterro.

Um segundo elemento para entender sua saída tática é a citação de Mateus 9. Mateus não faz menção da danação, enxofre, satanás ou inferno. Em Mateus 9 está a citação da cura de um paralítico, mas, curiosamente, há um barco na narrativa do evangelista, no capítulo 9 de seu livro. Começo do capítulo: 1- Jesus tomou de novo a barca, passou o lago e veio para a sua cidade, mas o pastor não menciona a barca, mas a misericórdia de Jesus quando ressuscita uma mulher. Disse ele à sua comunidade: - em Mateus 9, Jesus ressuscita uma mulher e, antes de o fazer, diz: “Ela não está morta, porém dorme”. Mais importante que a barca, neste momento é a reprovação social, os corpos que estão condenados. Ele está se referindo ao capítulo 23 de Mateus, onde está escrito: “E Jesus, chegando à casa daquele chefe, e vendo os instrumentistas, e o povo em alvoroço, Disse-lhes: Retirai-vos, que a menina não está morta, mas dorme. E riam-se dele. E, logo que o povo foi posto fora, entrou Jesus, e pegou-lhe na mão, e a menina levantou-se” (Mt:23-25). Trata-se da ressuscitação de uma menina. De certa forma ele quis dizer aos seus seguidores que não havia danação, mas possibilidade de salvação. O ato de negociar as bíblias com Caronte tem esse aspecto de salvação. Por isso não era necessário mencionar a barca, ou o cruzamento de barca que Jesus fazia, mas que o fazia para ressuscitar pessoas entre os mortos, tirando-os do aguardo da ressurreição ou danação.

Esta também é uma tradição forte no cristianismo e que, de certa forma, se opõe ao princípio da danação. Há ainda outra visão dentro que coloca a morte como um sono, um estado sem consciência (Eclesiastes 9:5; Jó 14:21; João 11:11-14), de forma que, consequentemente, os ímpios mortos não estão no inferno nem os salvos mortos no céu, mas aguardando a segunda vinda de Cristo, quando então os salvos entrarão para o céu, que é eterno, e os ímpios entrarão no lago de fogo, o inferno (Apocalipse 20:15), que também será eterno (Miquéias 4:3). Segundo essa interpretação, o inferno é um lugar preparado para a punição de Satanás, seus anjos e seus seguidores (Mateus 25:41), ao contrário da visão comum que coloca Satanás como dominante do inferno.

Essa “espera” nos remete novamente ao limbo. Há um intermeio entre morrer e viver onde se abre uma janela de diálogo entre os dois mundos. Esse diálogo, para o pastor, é evidente: a bíblia serve para demonstrar que, se elas morreram em pecado pela prática do suicídio, há ainda alguma esperança de salvação. A bíblia será a arma − a Palavra será a luz para a travessia e a garantia de ser bem recebida pelos anjos de Deus. Elas não foram mortas imediatamente; aguardavam a travessia. Porquanto, dormiam até o juízo final.

A narrativa do pastor liga a história do seu sofrimento com a morte a um grande projeto. A linguagem cotidiana tem por hábito racionar as suas ações com encadeamentos lógicos. Com o gesto da bíblia, a morte blasfema retorna ao convívio com o projeto divino. A tempestividade do ato – o fétido, o mefistofélico – ganha garantias de absolvição, garantindo um albergue nas graças divinas.

A presença imagética da bíblia garante um ritual de salvação. O rito é, acima de tudo, um agir, uma modalidade de fazer, um conjunto de condutas corporalizadas (MAISONNEUVE, 1988). Essa referência não consta ao final. que não têm necessariamente de comportar uma compreensão intelectual. O rito é gesto e, nessa medida, é linguagem e signo inscrito no corpo, e que coloca em comunicação e relação com os outros ou com uma transcendência. Nesse caso do suicídio, demarca uma possível regeneração.

O próprio pastor encomendou a alma da esposa e da mãe dela com o auxílio de um outro presbítero. Nas histórias desse tipo de relacionamento, houve casos de proibição de enterro no cemitério comum. Quando era permitido, então se fazia necessário colocar o caixão por cima do muro, entrar por acesso lateral e, por vezes, ser sepultado do lado de fora. Segundo Reis, no século XIX, as pessoas eram enterradas conforme sua condição social. Segundo o código canônico, no entanto, a Igreja proibia definitivamente o enterro eclesiástico a Judeus, heréticos, cismáticos, apóstatas, blasfemos, suicidas, duelistas, usurários, ladrões de bens da igreja, excomungados, religiosos enriquecidos − se tinham profissão de votos de pobreza −, aos refratários à confissão e à extrema-unção, infiéis, crianças e adultos pagãos (1991, p. 72). Acresceríamos: aos suicidas.

Ao lado desta história do pastor Sr. A podem ser colocadas as indagações do cônego José Maria Villa7. O cônego foi invocado por uma fiel que pedia explicações sobre o comportamento de um padre que se recusou a rezar pela alma de um irmão de seu marido, suicida: − “Gostaria de saber se o senhor poderia me explicar a atitude do padre. Se foi uma atitude isolada ou se é sempre assim. Podemos mandar rezar missas em intenção da alma de meu cunhado?”.

Em resposta, envolta em racionalidades teológicas, o padre também recorre a Jó. Primeiramente lembrou que “[...] nada justifica o suicídio porque, por mais árduas que sejam as condições de existência de uma pessoa, o homem foi feito para enfrentar durante a vida situações adversas, às vezes duríssimas”. Lembrou a Cidade dos Homens, para relembrar que Deus nunca recusa ao homem os auxílios de que precisa para cumprir seus deveres familiares, profissionais e sociais e para superar todas as provações. E, então, recorre a Jó: “Em verdade, em verdade vos digo: se pedirdes alguma coisa a meu Pai em meu nome, Ele vo-la dará”, disse Nosso Senhor Jesus Cristo (Jo 16, 23). Assim, “Tudo que pedirdes, com fé, na oração, o recebereis” (Mt 21, 22). E, com essas citações, sentencia: “O desespero do suicida é uma negação pecaminosa da misericordiosa paternidade de Deus e da promessa infalível de Jesus Cristo”.

Há outro dizer doutrinal que está presente na fala do cônego. O suicídio é um pecado escandaloso, que atenta contra os direitos de Deus. É um pecado que agride brutalmente o convívio familiar e social, e, muitas vezes, de um sustentáculo material, afetivo e espiritual. Assim, não tem dúvidas: É um pecado gravíssimo e que precipita a alma diretamente no inferno.

As normas canônicas não permitem a administração de exéquias eclesiásticas aos “pecadores manifestos” − como é o caso dos suicidas − “[...] a não ser que antes da morte tivessem dado algum sinal de arrependimento” (Cânones 1.184/5). O item 3º do cânon 1.184 introduz a precisão de que a privação das exéquias eclesiásticas deve ser aplicada aos “[...] pecadores manifestos, aos quais não se possam conceder exéquias eclesiásticas sem escândalo público dos fiéis”. Ora, nada mais escandaloso e manifesto, se compreendido dessa forma, que o suicídio. O cânon reúne a visão da traição e a certeza da danação.

Quanto à compostura do sacerdote que se recusou a rezar pela alma da pessoa que cometeu o suicídio, presumivelmente examinou a situação concreta para, conforme diz o cânone, evitar o “escândalo público dos fiéis”. Disse, contudo, que, se o suicida tivesse dado sinais visíveis de arrependimento, mesmo que nos últimos momentos de vida, a misericórdia lhe teria concedido o perdão. Disse à fiel:

É preciso que haja algum testemunho fidedigno de que o suicida, antes de expirar, tenha, por exemplo, beijado devotamente um crucifixo ou alguma imagem ou objeto piedoso, tenha batido no peito dando mostras de arrependimento de seu pecado, tenha pedido que lhe levassem um sacerdote, ainda que este não tivesse chegado a tempo etc. Sem estes sinais, o sacerdote não pode dar-lhe “sepultura eclesiástica”, ou seja, rezar publicamente pelo defunto, encomendar-lhe a alma, benzer sua sepultura etc., nem celebrar as Missas de exéquias.

Apesar de o cânone ser manifesto e claro, parece ressoar as palavras de Mateus citadas por ele mesmo: tudo que pedirdes com fé, na oração... Então afirma que há uma possibilidade de salvação em não sendo manifesta pelo suicida. É a concessão “In Extremis”:

[...] resta a possibilidade de Deus ter concedido in extremis ao suicida a graça do perfeito arrependimento, sem que ele o tenha podido manifestar publicamente, é permitido rezar privadamente pelo defunto, e mesmo encomendar Missas em sua intenção, desde que estas sejam celebradas privadamente e assistidas só pelos familiares e amigos mais íntimos, sem comunicar ao ato nenhum caráter social.

Há uma condenação profética e social. Embora se possa dizer que, em ambas, o perdão é possível. Na narrativa do pastor A, apesar de pertencerem – ele e o cônego – a credos diferentes, essa condenação é dada como certa. Possivelmente a Palavra fosse o sinal in extremis, já que ele não presenciou o enforcamento da mulher e da sogra.

Ao lado dessa descrição da história vivida pelo pastor A, pode ser colocada uma outra tradição que encontramos na cultura rural do Paraná. Trata-se da “encomenda” da morte por homicídio. Conta-se que, querendo a família que seja encontrado o autor da morte de seu querido, precisa colocar uma moeda embaixo da língua do morto: “Era costume da época”, nos disse o delegado aposentado Alcebíades Ferreira8. Era comum, nos relatou, que em casos de a família não colocar a moeda, a própria polícia o fazia na esperança de resolver logo o caso. Não há dúvida de que se trata de um óbolo, embora não envolto pela perspectiva de salvação, mas o próprio delegado dá as pistas da importância de “descanso do morto”: “[...] ele (o morto) não descansa em paz enquanto o mistério não é revelado”. Ocorre, portanto, que a perspectiva de ponte como fronteira entre dois bordos está, sim, presente.

É mais provável que a estratégia do pastor encontre plausibilidade nessa tradição dos homicidas para negociar o óbolo, porém não é possível, pelo limite das fontes, avançar nessa perspectiva subjetiva.

Considerações finais

A ideia de paraíso pós-morte confronta a versão racionalizada da fé, mediante o saber teológico através da prática pastoral, mas também de costumes movidos pela tradição. Colocar bíblias no caixão pode ser uma analogia com colocar moedas embaixo da língua do morto. Da mesma forma, na visão racionalizada, a origem desse confronto é uma questão gnosiológica e doutrinária do catolicismo e de alguns credos protestantes, porque os relatos se referem aos casos de suicidas e de homicidas. É sabido, pelas várias áreas do conhecimento, o quanto esse tema é caro. Médicos, psiquiatras, psicólogos, sociólogos e teólogos há muito se têm debatido com esse tema.

As repostas migraram entre a loucura, a sedição, a vingança, a vagabundagem, a tentação e, atualmente, paira como discurso médico. São saberes fantasmagóricos sempre na trama horizontal dispostos a verticalizar-se em modos de saber praticado, entrincheirados em hospitais, manicômios, assistência social, medicinas, psiquiatria.

Quando essas fantasmagorias se encontram disseminadas no meio rural, as escalas “colidem”. As racionalidades se tocam; o homem e o profissional disputam, em um jogo simbólico, a nomização da ordem social (BERGER, 1985). São ordens desiguais porque ao saber científico compete a universalização, enquanto ao saber cotidiano, o universo de um espaço de sobrevivência.

A prática pastoral é, no meio rural, um tipo de saber organizador da visão essencialista do homem, desenvolvendo a tessitura de organização do caos. Profundamente marcados pelas fontes doutrinais e pelos mandamentos fundamentais, os pastores, na prática pastoral, pretendem dissolver as dificuldades existenciais em uma linguagem fundante mítica que coloca atos simples no interior de um mistério e de um ministério. Conforme Miranda, lembrando o Vaticano II, dentre muitos objetivos, um dos principais foi “[...] realizar um aggiornamento, a saber, proclamar a salvação de Deus numa linguagem que fosse entendida e significativa para os nossos contemporâneos […]" (MIRANDA, 2005, p. 31-54). O termo "aggiornamento" enquanto "tradução" ou "atualização" da linguagem teológica para consumidores não teologais parece ser o apontamento do autor, contudo a pastoral pretende mais que isso. Pretende a tradução da simples existência – dos atos comuns, ordinários – em uma existência mística. Nos tais casos a que fazemos menção, muitos desses aspectos ficam mais evidentes.

É pertinente, ainda, lembrar alguns estudos de Edgar Morin. Ele nos relata qual era o fundo do pensamento do homem primitivo com relação ao conceito de morte:

Nas consciências arcaicas em que as experiências elementares do mundo são as das metamorfoses, das desaparições e das reaparições, das transmutações, toda morte anuncia um renascimento, todo nascimento provém de uma morte − e o ciclo da vida humana inscreve-se nos ciclos naturais de morte-renascimento. O conceito cosmomórfico primitivo da morte é o da morte-renascimento, para o qual o morto humano, imediatamente a seguir ou mais tarde, renasce num novo vivo, criança ou animal. (MORIN, 1988, p. 103).

Se esquecermos, nesse seu apontamento de pesquisa, a menção a “homens primitivos”, são belas as suas referências a renascimentos, a metamorfoses, a desapropriações e a reapropriações. Os óbolos aqui apresentados têm essas qualidades.

Se quisermos ir mais longe, a mitologia grega também nos legou ensinamentos sobre a preocupação com a morte através dos escritos de Esopo sobre Eros e Psique, Hipnos e Tanatos, representando, respectivamente, o amor e a alma, o sono (uma espécie de morte) e a morte. Além disso, os gregos idealizaram uma região além-túmulo, denominada Hades, local onde habitavam os mortos e a que se conseguia chegar por intermédio de Caronte, o barqueiro encarregado de levar a alma dos mortos ao seu destino. Caronte cobrava pelos seus serviços e, por isso, observamos o costume de enterrar os mortos, naquela cultura, com uma moeda na boca.

Não menos fundada na mitologia estiveram os estudos de Sigmund Freud. Considerado o pai da psicanálise, fez algumas reflexões sobre a morte e criou algumas teorias sobre a morte e o morrer. Diante das dificuldades que ele estava encontrando para sustentar a afirmação fundamental da psicanálise de que o homem é um animal voltado unicamente para o prazer, ele cria uma nova teoria: a teoria do "instinto de morte". Ele sustentava, nessa teoria, haver um impulso interior para a morte (Tânatos), assim como para a vida (Eros); e, por conseguinte, podia explicar a violenta agressão humana, o ódio e o mal em uma forma nova, se bem que ainda biológica: a agressividade humana provém da fusão do instinto da vida com o da morte.

Não menos fundada na mitologia estiveram os estudos de Sigmund Freud. Considerado o pai da psicanálise, fez algumas reflexões sobre a morte e criou algumas teorias sobre a morte e o morrer. Diante das dificuldades que ele estava encontrando para sustentar a afirmação fundamental da psicanálise de que o homem é um animal voltado unicamente para o prazer, ele cria uma nova teoria: a teoria do "instinto de morte". Ele sustentava, nessa teoria, haver um impulso interior para a morte (Tânatos), assim como para a vida (Eros); e, por conseguinte, podia explicar a violenta agressão humana, o ódio e o mal em uma forma nova, se bem que ainda biológica: a agressividade humana provém da fusão do instinto da vida com o da morte.

Essas investidas científicas da morte nos levam às racionalidades da pesquisa. Pautados em seus métodos, as ciências disseminam os seus veredictos por meio de práticas bem delimitadas, mas são práticas excludentes. Excluem o inominado, as tradições ditas por outras linguagens. A interdisciplinaridade representa o rumo não somente a outras ciências, mas o encontro com outros saberes e deve abrir caminhos necessários e possíveis.

Podemos tomar o barco de Caronte. O modelo de ciência do século XIX perece. É necessário entender melhor de limbos.

Referências

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VAINFAS, Ronaldo; FLAMARION, Ciro Cardoso. Domínios da história. São Paulo: Campus, 2002.

Notas

1 Domenico di Pace Beccafumi (1486 − 18 de maio de 1551) foi um pintor italiano do Renascimento e do Maneirismo, ativo predominantemente em Siena e considerado um dos maiores representantes da Escola Sienesa. Nasceu em Montaperti, perto de Siena, filho de Giacomo di Pace, um camponês que trabalhava para Lorenzo Beccafumi. Vendo seu talento para a pintura, Lorenzo o adotou e o fez estudar arte com Mechero, um pintor de Siena. Apesar de ter ido para Roma e analisado as obras de artistas da Úmbria e de Florença, como Il Sodoma, Domenico sempre foi um artista provinciano de Siena. Suas obras são maneiristas, mas também mostram influências medievais, consequência ainda da tradição de Siena no período Gótico. Além de pintar, também trabalhou nos pavimentos da Catedral de Siena, uma obra que, ao todo, levou mais de um século para ser finalizada. Fez também um imenso arco e um cavalo mecânico para a procissão de Carlos V ao entrar em Siena.
2 O termo "limbo" é muito conhecido por quem se interessa por sobrenaturalismos ou religião em geral. Via de regra, é a representação de uma “condição” de limbo ou de um intervalo intransponível até que se passe por uma prova − quando há uma prova. Utilizo o termo com um sentido ontológico para descrever uma espécie de abismo criado por certos saberes e todo seu staff nominados de ciências – e onde a linguagem humana é a ponte. O limbo também é uma experiência do bordo, “lugar da vertigem que só o ser humano é capaz de expressar” (TIBURI, 2012).
3 Refiro-me ao personagem de Monteiro Lobato retratado com um indivíduo rural típico, cheio de vermes, sem vontade, desastrado.
4 Durante quase uma década as pesquisas desenvolvidas no Grupo de Estudos em Hermenêutica da Ciência e Soberania Nacional – ora enfocando a tecnificação do campo, o uso de agroquímicos, a relação êxodo e urbanidade, ora focando as consequências de sistemas produtivos, como o suicídio de agricultores – colhemos documentos orais, processuais, outros escritos, relatos, sobre aspectos cotidianos de uma cultura rural.
5 Como essas informações foram obtidas através da observação direta, interação e vivência com o informante e a sua comunidade, ele pretendeu o anonimato, não autorizando a divulgação de seu nome.
6 Fragmentos de afirmações que colhemos no projeto ANASUICÍDIO: análise do suicídio entre agricultores no Oeste do Paraná, subsidiado pela Fundação Araucária – 2009/2011.
7 Trata-se de religioso contemporâneo que mantém uma página de meio eletrônico para disseminar a fé mediante aconselhamento aos crentes. Em consulta no dia 4 de abril de 2012, encontramos uma resposta publicada nesse sítio, elaborada para uma interlocutora que tinha dúvidas sobre o procedimento de um determinado padre que se negou a fazer as exéquias presentes a um suicida. O cônego recorre a uma longa tradição eclesiástica para responder à interpelante. Cônego José Luiz Villach. Disponível em: http://www.catolicismo.com.br/materia/materia.cfm/idmat/123/. Acesso em: nov. 2012.
8 Alcebíades Ferreira foi delegado leigo, nomeado pelo Estado por indicação da comunidade. Tem hoje 87 anos.
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