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Sat, 31 Dec 2022 in Fronteiras
PASSADOS QUE NÃO PASSAM E FALÁCIAS PARA “SALVAR” A DEMOCRACIA
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Em plena Guerra Fria, em 1964, sob o pretexto da comunização do Brasil, um golpe militar atingiu a combalida democracia brasileira. Iniciado com uma rebelião liderada pelo general Olímpio Mourão Filho, ao ordenar que as tropas da 4ª Divisão de Infantaria sediadas em Juiz de Fora marchassem em direção ao Rio de Janeiro, o golpe teve como objetivo destituir o governo João Goulart e, mediante um simulacro em defesa da democracia, implantou-se uma ditadura militar que perdurou por 20 anos no Brasil.
Mourão era conhecido nos círculos políticos e militares por ter sido um dos protagonistas daquilo que, até então, tinha sido uma das últimas dissimulações que justificaram um golpe militar na República brasileira. Antes, há quase 30 anos do golpe de 1964, em 1937, quando era capitão, teria redigido o plano Cohen, um documento falso atribuído aos comunistas. Nele, constava que o Komintern estava dando instruções e organizando um golpe comunista no Brasil, o que deu forças para Getúlio Vargas outorgar uma nova Constituição delineada por ideais fascistas, fechar o Congresso e implantar a ditadura do Estado Novo.
A revelação de que Olímpio Mourão Filho havia redigido o plano Cohen foi dada pelo general Góes Monteiro anos depois, quando a ditadura varguista passou por uma crise. Após anos de implantação do Estado Novo, Monteiro revelou que Mourão produziu material que aparentou um golpe comunista, uma falácia que, para “salvar” o Brasil do “perigo vermelho”, deu bases para a implantação de uma ditadura. O motivo da estratégia advinha das disputas políticas que antecederam o golpe de Estado, marcadas pela oposição entre a Ação Integralista Brasileira (AIB), que agregava grupos de direita com perfis fascistas, e a Aliança Libertadora Nacional (ALN), formada em sua maioria por militantes comunistas. A polarização tinha seus motivos e estava acirrada devido aos reflexos da Insurreição Comunista de 1935, que na liderança de Luis Carlos Prestes carregou a herança dos movimentos tenentistas da década de 1920.
O movimento comunista de 1935, com o passar dos anos denominado pejorativamente de Intentona, é um exemplo de como leituras de passados foram mobilizadas nos últimos anos no Brasil em decorrência da polarização que se instalou no campo político. Exemplos de passados que não passam e pouco se alinham aos preceitos democráticos construídos nas últimas décadas no Brasil podem ser constatados por lideranças militares ao rememorarem o ocorrido em 1935 ou o golpe de 1964. As homenagens às vítimas da sublevação e a defesa do que se considera um “enfrentamento ao comunismo” foram reforçadas com postagens polêmicas em redes sociais, como a do comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas, que tratou, em 2018, o movimento de 1935 como algo a ser lembrado para evitar o derramamento de sangue de “irmãos contra irmãos” por parte “de uma ideologia diversionista”. Também não faltaram nas redes sociais manifestações por parte de outros militares apoiadores do ex-presidente Jair Messias Bolsonaro, como as de seu vice-presidente, general Hamilton Mourão, ou de seu mais recente candidato à vice, general Walter Braga Netto, principalmente quando trataram do golpe de 1964.
São muitas as conexões entre a Insurreição de 1935, o golpe militar de 1964 e o que vivenciamos em tempos recentes na tensa eleição presidencial de 2022. Seria exagero estabelecer similaridades entre momentos distintos na história do Brasil, mas não seria impertinente demonstrar passados que não passam, ou passados presentes, na construção da democracia brasileira.
Entre 1937 e 1945, Olímpio Mourão Filho, militar atuante no movimento integralista, experenciou situações distintas enfrentadas pelos camisas verdes no cenário político brasileiro, quando contribuiu diretamente para a arquitetação e o golpe militar de 1937 e, depois, presenciou o putsch de 1938, tentativa de golpe contra Vargas liderado por integralistas apoiados por oposicionistas liberais que colocou os camisas verdes na marginalidade do Estado Novo.
Com o fracasso do putsch, uma campanha anti-integralista promovida pela propaganda oficial do governo Vargas representou os camisas verdes como contrários aos interesses nacionais e como colaboradores dos nazifascistas na Segunda Guerra Mundial (NETO, 2012, p. 151). Com o fim da guerra, em 1945, e no processo de democratização do Brasil até o golpe de 1964, os integralistas tiveram que enfrentar o passado. Por terem suas fundamentações teóricas questionadas, pesava as representações históricas que os aproximavam do nazifascismo e do antissemitismo. Nos escritos de líderes como Plínio Salgado, Gustavo Barroso e Miguel Reale, o “comunismo, o capitalismo internacional, o judaísmo e a maçonaria” eram tidos como inimigos e nos textos de Barroso era acrescentada a “temática central do antissemitismo” (GONÇALVES; NETO, 2020, p. 20).
Os fundamentos que mobilizaram integralistas no início da década de 1930 produziram divergências, dissidências e silenciamentos no decorrer dos anos. A tentativa de negarem o fascismo no pós-guerra se deu pela participação de seus militantes no Partido de Representação Popular (PRP). Como estratégia de construção da memória, os escritos antissemitas de Barroso foram sendo sucumbidos para “soterrar um passado comprometedor”, que demonstrou a preocupação de se desvincularem “de alguns de seus pontos mais polêmicos” (CHRISTOFOLETTI, 2021, p. 100).
As tentativas de renovação do integralismo ao longo das décadas apresentaram leituras de passados assimiladas e imiscuídas a projetos políticos de setores conservadores e autoritários da sociedade brasileira. Em grande parte, suas premissas basearam-se nos escritos de Plínio Salgado para lidar com a turbulência de um passado, além de usarem de estratégias para apagar o que passou, cristalizar o comunismo como inimigo, apoiar o golpe de 1964 e a ditadura militar brasileira.
Como parte de um processo político mais amplo, num arrazoado de consensos, conflitos e contradições, muitas relações se estabeleceram entre regimes autoritários do entreguerras e os instaurados após 1945, demonstrando faces do fascismo no populismo e na extrema direita. Diferentes formas de visibilidade dadas a esses fenômenos em situações peculiares foram arregimentadas por meio dos usos do conceito de totalitarismo, na academia ou na cultura política dos séculos XX e XXI, constituindo uma estabilidade na memória pública em que o holocausto se tornou “um paradigma de violência e genocídios contemporâneos” (TRAVERSO, 2021, p. 203).
A partir dessas intrínsecas relações depreende-se que temas vinculados ao nazifascismo passaram por um processo de mundialização. Andreas Huyssen (2014, p. 184) nos permite compreender que através da produção de narrativas da literatura ficcional e documental, seja na indústria cinematográfica, seja no mercado editorial, foram difundidas representações de passados na cultura contemporânea, como do holocausto e de genocídios, tornando-os conceitos relevantes na construção de pautas em defesa dos direitos humanos adequados a situações específicas, dentre várias, das ditaduras militares latino-americanas.
No Brasil, os cenários políticos entre as décadas de 1930 e 1960 elaboraram espectros políticos que ainda se mantêm em tempos presentes. No imaginário social ainda é pujante a visão dicotômica entre direita e esquerda, difundindo representações de que o campo à direita, com suas falácias permeadas pelos preceitos de moralidade, irá “salvar” a democracia brasileira do “perigo vermelho”.
Para se aproveitar do “medo vermelho” e combater demandas por direitos sociais, o anticomunismo serviu de manipulação, por parte de setores conservadores, para justificar a deposição de João Goulart em 1964, agregando dissidências da direita e extrema direita, como os integralistas. O mal maior que estes setores combatiam era representado por leituras atravessadas e apressadas, configurando simpatizantes e militantes de esquerda como “personagens nefastos: violentos, ateus, imorais (ou amorais), estrangeiros traidores, tirânicos etc. Nas versões mais extremas foram apresentados como parceiros do próprio diabo” (MOTTA, 2021, p. 22-23).
Setores conservadores díspares encontraram no anticomunismo justificativa para se alinharem ao golpe de 1964 e darem sustentação aos governos militares que se sucederam por 20 anos. Um exemplo foi a participação do general Olímpio Mourão Filho, integralista que deu a ordem para que as tropas da 4ª Divisão de Infantaria saíssem em direção ao Rio de Janeiro. Além dele, a presença de integralistas em apoio a ditadura militar que iria “purificar” o Brasil consolidou-se com personagens que ocuparam cargos nos governos militares após 1964. Alguns se tornaram mais visíveis, como os dois “integralistas - o brigadeiro Márcio de Sousa Melo e o almirante Augusto Rademaker” (GONÇALVES; NETO, 2020, p. 109), que compuseram a Junta Militar de três ministros no contexto de afastamento do general Costa e Silva da presidência, além de um dos casos mais emblemáticos, a nomeação do integralista Alfredo Buzaid como ministro da Justiça do governo do general Emílio Garrastazu Médici e, posteriormente, como ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) por indicação do presidente general João Baptista Figueiredo.
Buzaid, participante da Revolução Constitucionalista de 1932, ajudou Plínio Salgado a estruturar a doutrina integralista baseada no lema “Deus, Pátria e Família”, saindo em defesa dos camisas verdes quando acusados de racistas e declarando que o problema do Brasil não era de “ordem racial”, mas “moral”. Em 1967, durante o governo de Costa e Silva, foi nomeado coordenador da revisão de códigos, o que o envolveu diretamente na construção, defesa e aplicação do Ato Institucional nº 5 (FOLHA DE SÃO PAULO, 11/2/1971, p. 3). Como ministro da Justiça do governo Médici, enfrentou constantes denúncias de violação aos direitos humanos.
As campanhas de purificação contra a corrupção tenderam a anteceder as tentativas ou consumações de golpes de Estado. Foi assim com o tenentismo na década de 1920 ao questionar o sistema eleitoral sob o domínio das oligarquias e desencadear o movimento de 1930. Foi assim com as acusações de corrupção contra os presidentes Juscelino Kubitschek e João Goulart, que resultou no golpe de 1964. Foi assim contra o presidente Luís Inácio Lula da Silva, que culminou com sua prisão e a eleição de Jair Bolsonaro em 2018. Nesses caminhos havia “salvadores da pátria”, destilando discursos moralistas, de anticorrupção, falácias para “salvar” a democracia, tendo no Ministério da Justiça um espaço privilegiado de atuação e nas Forças Armadas a representação de instituição “redentora”.
Embora muito daquilo que culminou nas eleições de 2022 seja resultado de tensões construídas ao longo da década de 2010, não se deve desmerecer os espectros das ditaduras brasileiras que ainda perambulam no campo político e se mantiveram presentes no processo de redemocratização nas últimas décadas, muito em voga com reivindicações e representações de passados de grupos sociais, políticos, culturais e econômicos. À sombra do que vinha sendo construído com ampla visibilidade, agentes de memória de grupos conservadores divulgaram interpretações de passados para legitimarem e defenderem governos projetados pelo vislumbre autoritário de setores da sociedade brasileira.
Na cena principal da memória e da história estavam projetos políticos autoritários e a ditadura militar, disputados a partir de manifestações, articulações e estratégias de difusão de leituras de passados de instituições públicas, partidos políticos, movimentos sociais, empresas de comunicação, mídias sociais e comunidades de memória. Em ambientes como esses deu-se ressonância à diversas posições sobre o passado, produzindo-se uma “imensa cacofonia, cheia de barulho, de furor, de clamores, de polêmicas e de controvérsias” (ROBIN, 2016, p. 20).
Deve-se observar que essas questões permearam os debates historiográficos com a emergência de estudos sobre a ditadura militar brasileira em decorrência do acesso a documentações, da efeméride dos 50 anos do golpe militar de 1964 e de demandas no campo da memória que potencializaram o debate público das violações contra os direitos humanos cometidas na ditadura militar brasileira, muito despertados pela instauração da Comissão Nacional da Verdade (CNV), em 2012.
Em contrapartida, abordagens de diferentes suportes de comunicação sobre autoritarismos para públicos mais amplos que o da academia, como a difusão através de variados meios de comunicação de expressões e opiniões em defesa de ações repressivas, atingiram diretamente preceitos dos direitos humanos, tendo como maiores vítimas a população negra, pobre, feminina e homossexual.
O que poderiam ser casos esmaecidos, como o fascismo e o nazismo, ebuliram através de mobilizações políticas que se contrapuseram à apuração, pela CNV, das violações dos direitos humanos na ditadura militar brasileira. A extrema direita não deu trégua, assim como nos anos que antecederam ao golpe de 1964, implicando no debate político tramas comunistas que deveriam ser varridas para “salvar” a democracia.
Envolvidos com projetos de conservação da memória durante as décadas de 1990 e 2000, os então chamados neointegralistas tentaram se articular internamente. Daquilo que se manteve enquanto estrutura política de grupos conservadores, da direita e de extrema direita, encontrou-se no Partido de Reedificação da Ordem Nacional (PRONA), que tinha na figura de Éneas Carneiro a principal liderança, um espaço de atuação político-institucional. Após a extinção do PRONA, a atuação nos espaços virtuais tornou-se mais vigorosa, com a intensificação de questionamentos sobre aqueles que apresentavam interpretações da história e atingiam o passado que os integralistas queriam apagar.
Nos antecedentes da instauração da Comissão Nacional da Verdade, em 2010, integralistas atuaram contra o Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3) propagando a ideia de que se tratava de um ataque à família tradicional, em defesa do aborto e da prostituição. Em manifestações públicas, muitos se posicionaram contra o apoio do governo Dilma ao PNDH-3, dividindo espaços com outros grupos arregimentados pelo discurso anticomunista e contra o Foro de São Paulo. Misturados aos camisas verdes, muitos jovens demonstravam o que seria uma amálgama contra a democracia brasileira ao vestirem camisetas com a frase “Olavo tem razão!” (GONÇALVES; NETO, 2020, p. 181-182).
Em outras campanhas no início do primeiro mandato de Dilma Roussef, como do lançamento do documento que pedia a extradição do radical de esquerda italiano, Cesare Battisti, foram apresentados dizeres de ser o integralismo um movimento em favor da democracia, de “Deus, da pátria e da família”. Nesses eventos, o conservadorismo da extrema direita brasileira apareceu imiscuído em diferentes grupos e dissidências que apoiavam o então deputado federal Jair Bolsonaro como único capaz de enfrentar os comunistas, assim como defendido por grupos neonazistas, que tiveram como objetivo defender a “liberdade de expressão” do então deputado (GONÇALVES; NETO, 2020, p. 182-183).
As falácias desses grupos encontraram espaços privilegiados de articulação nas redes sociais, potencializando discursos de ódio contra defensores dos direitos humanos, ativistas de organizações não-governamentais, servidores públicos, cientistas, professores, e tantos profissionais rotulados de comunistas. Com simulacros de forte teor moralista e de anticorrupção aflorados com as manifestações de 2013, contribuíram para alavancar na cena pública e política figuras exóticas, ressentidas, sensacionalistas e defensoras de pautas conservadoras e reacionárias à favor do retorno da ditadura militar, atingindo comunidades indígenas, quilombolas, movimentos feministas e em defesa da diversidade e inclusão.
Com a vitória de Jair Bolsonaro nas eleições de 2018, as falácias para “salvar” a democracia ganharam espaço em muitas das cenas bizarras de seu governo, que evidenciaram abusos de poder, arroubos autoritários, ataques a autoridades públicas e questionamentos das urnas eletrônicas, o que respingava, inclusive, na credibilidade do próprio processo eleitoral que oficializou sua vitória. Nas expressões vociferantes do ex-deputado e então presidente se destampou no cenário político brasileiro um composto de personalidades de extrema direita, tornadas públicas, sobrevividas e ascendidas de um processo político de redemocratização que não enfrentou os crimes de Estado cometidos na ditadura militar ao não julgar torturadores e assassinos que ganharam proteção de um verniz de legalidade da Lei de Anistia de 1979.
A permanência de ímpetos golpistas de sujeitos que, sob o argumento de atuarem dentro das regras constitucionais e carregados de discursos que colocam o problema da “moral” como centro do debate político, se esconde em práticas oportunistas, manipulações e falácias para “salvar” a democracia. A qualquer custo, tentam encontrar brechas legais e fragilidades do Estado Democrático de Direito para arquitetarem simulacros, difundirem notícias falsas e aplicarem golpes contra a vontade popular, legitimada pela maioria dos votos de eleitores.
Sob o pretexto de se dizerem defensores da “liberdade de expressão”, da atuação dentro das “quatro linhas da constituição”, atingem frontalmente as regras democráticas e vociferam quando são alcançados pelas instituições no cumprimento da lei, ao ponto de serem fiéis críticos e negadores de indultos concedidos à presos, mas capazes de defender direitos humanos ou indultos presidenciais para comparsas que foram presos. É por meio de blefes deste tipo que se procura minar as instituições democráticas e configuram-se estratégias para se criar caos social e legitimar aventuras autoritárias.
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Author
Fernando Perli
Doutor em História pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP / Assis) Docente do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Grande Dourados (PPGH/UFGD), Dourados, Mato Grosso do Sul, Brasil. fernandoperli@ufgd.edu.br, Brazil