Cabrião: o debate político no Segundo Reinado por meio das caricaturas de Angelo Agostini
Cabrião: the political debate in the Second Reign by the Angelo Agostini's caricatures
Cabrião: el debate político en el Según Reinado por medio de las caricaturas de Angelo Agostini
Danilo Aparecido Champan Rocha
Doutorando em História pela Universidade Estadual de Maringá (UEM). Mestre em História pela UEM.
Sandra de Cássia Araújo Pelegrini
Doutora
em História Social pela Universidade de São Paulo (USP); Pós-Doutorado
em Patrimônio Cultura pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).
Docente do Departamento de História da Universidade Estadual de Maringá
(UEM) onde atua no Ensino de Graduação em História, Arquitetura e
Urbanismo, Artes Visuais, e no Programa de Pós Graduação em História da
UEM (Mestrado e Doutorado).
Fronteiras,
v. 20, n. 35 - 2018
Editora
da UFGD
Recebido
em: 31/06/2018
Aprovado
em: 30/07/2018
Resumo:
A fundação do Cabrião (1866-1867), segunda revista ilustrada e
humorística de São Paulo, editada por Américo de Campos, Antonio Manoel
dos Reis e Angelo Agostini, consolidou o potencial da combinação da
linguagem verbovisual para noticiar os principais acontecimentos
citadinos, os debates políticos e os eventos culturais. A caricatura,
técnica de deformação do real por meio do ridículo e da derrisão do
objeto retratado, abrangeu o acesso das discussões da imprensa à um
público não-letrado e permitiu intensificar a difusão de valores e
ideias através de sua mordacidade cáustica. Nesse sentido, o periódico
paulistano ilustrado criticou seus adversários políticos,
principalmente, os conservadores e os jesuítas, considerados como
obstáculos para o “progresso civilizatório”. Identificados com o
ideário liberal, os redatores defenderam a descentralização política, o
ensino laico, a supressão do poder moderador, entre outras medidas, o
que muitas vezes ocasionou problemas políticos com seus próprios
correligionários. Por fim, a oposição de diversos segmentos sociais da
província de São Paulo contra a continuidade da circulação do Cabrião
provocou uma crise financeira que impediu a produção de uma segunda
série.
Palavras-chave: História cultural. Segundo Reinado. Imprensa ilustrada. Cabrião.
Abstract:
The foundation of Cabrião (1866-1867), second illustrated and humorous
magazine of São Paulo, edited by Américo de Campos, Antonio Manoel dos
Reis and Angelo Agostini, consolidated the potential of the combination
of verbovisual language to report the main city events, political
debates and cultural events. The caricature, technique of deformation
of the real through ridicule and derision of the object portrayed,
covered the access of the press discussions to a non-literate public
and allowed to intensify the diffusion of values and ideas through
its caustic mordacity. In this sense, the enlightened of São Paulo
newspaper criticized its political opponents, especially the
conservatives and the Jesuits, considered as obstacles to
"civilizational progress". Identified with the liberal ideology, the
writers defended the political decentralization, the lay teaching, the
suppression of the moderating power, among other measures, which often
caused political problems with its own coreligionists. Finally, the
opposition of several social segments of the province of São Paulo
against the continuity of the Cabrião's circulation caused a financial
crisis that prevented the production of a second series.
Keywords:
Cultural History. Second Reign. Illustrated press. Cabrião.
Resumen:
La fundación del Cabrião (1866-1867), segunda revista ilustrada y
humorística de São Paulo, editada por Américo de Campos, Antonio Manoel
dos Reis y Angelo Agostini, consolidó el potencial de la combinación
del lenguaje verbo-visual para noticiar los principales acontecimientos
citadinos, los debates políticos y los acontecimientos culturales. La
caricatura, técnica de deformación del real por medio del ridículo y
del derrumbamiento del objeto retratado, abarcó el acceso de las
discusiones de la prensa a un público no letrado y permitió
intensificar la difusión de valores e ideas a través de su mordacidad
cáustica. En ese sentido, el periódico paulistano ilustrado criticó a
sus adversarios políticos, principalmente, a los conservadores y los
jesuitas, considerados como obstáculos para el "progreso
civilizatorio". Identificados con el ideario liberal, los redactores
defendieron la descentralización política, la enseñanza laica, la
supresión del poder moderador, entre otras medidas, lo que a menudo
ocasionó problemas políticos con sus propios correligionarios. Por
último, la oposición de diversos segmentos sociales de la provincia de
São Paulo contra la continuidad de la circulación del Cabrião provocó
una crisis financiera que impidió la producción de una segunda serie.
Palabras
clave: Historia cultural; Según Reinado; Prensa ilustrada; cabrião.
INTRODUÇÃO
A
caricatura, representação visual e humorística de uma pessoa,
acontecimento, costume ou ideia, deforma o real de modo burlesco, em
forma de crítica ou divertimento, técnica encontrada desde a
Antiguidade na decoração de utensílios domésticos e de paredes na
Grécia e na Roma. Derivada do verbo italiano caricare
(carregar, sobrecarregar, com exagero), o desenho caricatural foi
difundido na Europa no século XVI, principalmente após a fundação
da academia em Borgonha pela família Carracci, e suas obras tiveram
forte aceitação social ao retratar as situações ridículas do
gênero humano, objeto disputado até por colecionadores no século
XVII (FONSECA, 1999). No mesmo período, a caricatura produzida na
Holanda incluiu a temática política nas suas sátiras gráficas,
cujo alvo central foi Luís XIV, rei da França, o que desafiou, de
acordo com Minois (2003, p. 76), a concepção de Platão e
Aristóteles sobre o âmbito político como o oposto dos assuntos
banais, por isso, reservado as abordagens “sérias” desprovidas
de humor.
No
século XIX, a intensificação do discurso cômico como ferramenta
de crítica nas sátiras políticas ou sociais e a proliferação da
imprensa contribuíram para o surgimento de periódicos ilustrados na
Europa, compostos pelas linguagens verbal e visual, combinação
possível graças aos desenvolvimentos técnicos de impressão
litográfico e tipográfico. O conteúdo humorístico dessas
revistas, elemento essencial na construção do ridículo,
potencializou no discurso verbovisual os “vícios”, os “defeitos”
e o “grotesco” de uma pessoa, sociedade, costume, religião ou
personalidade política. Dessa forma, La
Caricature (1830) e
Le Charivari
(1832), ambas revistas francesas, e o periódico inglês Punch
(1841),
todas precursoras e de publicação impactantes nas suas sociedades
respectivas, abordaram os principais assuntos da época e
problematizaram questões para um público mais amplo, inclusive os
analfabetos, o que muitas vezes provocou a perseguição e a censura
sobre os artistas e seus redatores.
No
Brasil, a litografia demorou para se consolidar na imprensa
oitocentista, principalmente, pelas limitações técnicas e pelos
poucos profissionais capacitados na área. Segundo Sodré (1999, p.
203), a primeira caricatura circulou de forma avulsa em 1837, de
autoria de Manuel de Araújo Porto-Alegre (1806-1879), o Barão de
Santo Ângelo, professor da Imperial Academia de Belas Artes e
considerado o primeiro caricaturista brasileiro. Além da impressão
avulsa, caricaturas e imagens foram introduzidas pioneiramente em
alguns periódicos como, por exemplo, o Museu
Universal: jornal das famílias brasileiras
(1838-1844) e a Lanterna
Mágica
(1844-1845), ambas as revistas consideradas precursoras nesse gênero
no âmbito nacional.
No
entanto, a Semana
Ilustrada
(1860-1876), redigida na corte pelo alemão Henrique
Fleiuss (1823-1882),
foi um marco na imprensa ilustrada, tanto pela abrangência de suas
publicações quanto pelo aumento da qualidade técnica das imagens
impressas. Periódico semanal, de oito páginas, dividido entre
ilustração e texto verbal, conforme Nery (2011, p. 175), abordou de
forma crítica nas suas caricaturas o cotidiano citadino, os costumes
de seus habitantes, as novas formas de sociabilidade e as
transformações do espaço urbano ocorridos ao longo do processo de
expansão de uma sociedade burguesa no Rio de Janeiro.
Em
São Paulo, a inexistência de uma imprensa sólida com produção
contínua e de longa duração, durante a primeira metade do século
XIX, foi um reflexo de sua economia de subsistência e do status de
segunda grandeza da província. Por isso, a fundação do Cabrião
(1866-1867),
revista ilustrada por Angelo Agostini, o mesmo caricaturista do Diabo
Coxo (1864-1865)
que foi o primeiro periódico a combinar a linguagem verbal e visual
nas suas publicações em São Paulo, significou um marco para a
imprensa paulista e consolidou o gênero como forma de narrar os
eventos políticos, sociais, culturais, econômicos e do cotidiano
citadino. Além de Agostini, Américo
de Campos e Antonio Manoel dos Reis
participaram da redação
do Cabrião,
porém, a escassez de fontes não nos permitiu obter mais informações
sobre a relação do trio, a não ser o viés político liberal como
um elemento aglutinador.
Jornal
domingueiro, a folha humorística reproduziu o modelo editorial da
Semana Ilustrada
e dividiu cada número em oito páginas, quatro ilustradas com
caricaturas e quatro com textos de notícias, poesias, entre outras
temáticas. Do mesmo modo, o Cabrião
também
adotou dois
personagens-símbolos para encarnar as opiniões da revista, o
Cabrião e o Sr. Thomaz, ambos empenhados em denunciar os “vícios”
daquela sociedade. A inspiração para o personagem central e o
nome do semanário foi baseada na literatura de um importante
escritor francês, Joseph Marie Sue (1804-1857), mais conhecido como
Eugène Sue. Em Os
Mistérios de Paris (1842),
o personagem Cabrião, nome aportuguesado de Cabrion, foi um pintor
residente na pousada de Alfred Pipelet e Pomona Fortunata Anastasie
Pipelet, caracterizado como uma figura inoportuna e incômoda,
responsável por infernizar a vida do sr. e da sra. Pipelet.
Paralelamente, podemos deduzir como a escolha do nome transpôs a
intenção dos redatores de incomodar determinados segmentos sociais
da mesma forma que seu homônimo ficcional e, assim, “corrigi-los”
por meio do riso, conduta presente na construção cômica e irônica
das caricaturas e das seções verbais como demonstraremos a seguir.
CABRIÃO:
IMPRENSA E HUMOR EM SÃO PAULO
No
decorrer de suas publicações, as denúncias do Cabrião
atingiram diversos grupos sociais da cidade, aumentando a oposição
contra o periódico. Porém, como prometido na apresentação do
primeiro número, nenhum grupo foi tão criticado quanto os jesuítas
e os conservadores. Para evitar qualquer mal-entendido, os redatores
reafirmaram o seu posicionamento ideológico e seus adversários no
segundo número.
Si vera est fama, as palavras do
Cabrião,
não foram bem
traduzidas, fazendo-se mister uma interpretação dotrinal. Lá váe.
O Cabrião
foi crêado para môer a paciencia dos jesuitas, para amolar os
vinagres,
para enforcar todos os cascudos existentes e por existir. [...]
O Cabrião
tem em vista dar caça as beatas, e á sucia de marmanjos, que depois
de ter pintado o padre, vestiram a opa e vivem de orar a Deos, e
beijar a dextra dos barbados. Querem que a sua missão seja preparar
o terreno para o pleito eleitoral. Upa! É isso e mais alguma
cousinha (Cabrião,
2000 [1866], p. 10, grifo do autor).
De
forma mais explícita e direcionada, os redatores exibiram como o
periódico “foi criado para moer a paciência dos jesuítas, para
amolar os vinagres, para enforcar todos os cascudos existentes e por
existir”, ou seja, o semanário tinha por maior objetivo criticar
os seus dois adversários principais: os conservadores
(vinagres/cascudos) e os jesuítas. Interessante ressaltarmos o fato
do Cabrião
abordar incisivamente os jesuítas, além de parte do clero secular e
das ordens religiosas,
pela prática generalizada de segmentos religiosos de interferirem no
sistema eleitoral a favor dos conservadores, situação sublinhada
ironicamente no trecho acima ao conceber a sua “missão” na terra
a de preparar os fiéis para o pleito eleitoral.
O
semanário, além de promover a extinção da Companhia de Jesus e
suas principais bandeiras, também denunciava os privilégios e a
vida “feliz” desse segmento que pregava o ascetismo e a expiação.
O mote da gula e da hipocrisia foram explorados inúmeras vezes pelo
periódico para retratar os “vícios” dos integrantes do clero,
como Agostini abordou na caricatura seguinte.
Figura 1: “A gula”
Fonte:
Cabrião,
São Paulo, n. 3, 1866, p. 05.
No
primeiro plano, um porco faz uma refeição, vestido com roupas
masculinas e sentado à mesa conforme exigiam as regras de etiqueta.
O personagem Cabrião, o acompanha e observa o seu banquete. No
diálogo, o suíno explicou como a sua “pândega” consistia em
“comer bem” e “beber melhor”. Nomeado com a letra “p”, a
abreviação podia indicar a
palavra porco,
combinação
convergente com a linguagem visual, mas diante das descrições e do
posicionamento da revista, também podia apontar implicitamente o
vocábulo ‘padre’, ambiguidade apresentada para a interpretação
do público. A representação do porco, juntamente com a do asno,
também foi uma forma de satirizar a Igreja e o clero,
principalmente, nas manifestações populares antirreligiosas na
França do século XIX (MINOIS, 2003). Dessa forma, compreendemos
a letra “p”
como uma estratégia dos redatores
para sugerir
implicitamente se tratar de um “padre” e não para abreviar a
palavra porco.
O
traço exagerado na representação da barriga do eclesiástico
retomou a ideia da gula, no sentido de ressaltar o excesso
desvirtuoso e a fartura das refeições, abundância caracterizada
pela garrafa de vinho, sem nenhum copo para dosar o consumo, e um
pernil inteiro em cima da mesa, entre outros alimentos. Como
ironizado em outras passagens e caricaturas, lugar de cozinha decente
era no Seminário (Cabrião,
2000 [1866], p. 41), digno da presença de um cozinheiro francês
cordon bleu
(Cabrião,
2000 [1866], p. 47). No plano simbólico, a barriga também reforçou
a conduta egoísta, voltada apenas para o seu bem-estar, sentido
propagado durante a circulação do Cabrião
e, anteriormente, no Diabo
Coxo.
De
forma sutil, a resposta do personagem da revista diante da cena
apontou a interferência dos jesuítas na comunidade e na vida
privada a partir de seus comentários sobre a “vida alheia”. Na
definição de um suposto dicionário, o periódico informou o
significado da palavra “jesuíta”.
[...] Jesuíta – Frade da
Companhia de Jesus, instituida pelo visionario Ignacio de Loyola. –
Animal degradado, que abdica os fóros de racional para tornar-se
instrumento cego e feroz dos interesses da ordem a que pertence. –
Encarnação da hypocrisia. – Homem cousa. – Ente desnecessario,
pertencente á uma seita não só inutil, como perigosa e nociva. –
Symbolo da estupidez, galvanisada pelo fanatismo. [...] – Symbolo
da ambição do ouro e do mando, sob a capa do desinteresse e da
mansidão. – O maior desacreditador da religião de Christo. –
Optimo obreiro da superstição. – Inimigo nato da razão e da
consciencia humana. [...] – Acerrimo inimigo do povo, da democracia
e da soberania popular. – Servil bajulador dos grandes da terra, e
carrasco impassivel da populaça miuda. [...] – Corruptor de
meninos e mulheres por meio do confessionario e do ensino. [...] –
Habil aproveitador dos segredos domesticos apanhados no
confessionario. [...] – Sanguesuga insaciavel dos pobres de
espirito e dos tolos (Cabrião, 2000 [1866], p. 63).
Os
sentidos da palavra foram baseados na visão ideológica do Cabrião
e condensou em linhas gerais as suas principais concepções sobre a
instituição: a sua faceta “irracional”, “supersticiosa”,
uma seita “inútil, perigosa e nociva” para o seu século,
“símbolo da estupidez” e do “fanatismo”, ou seja, grupo
contrário a “modernização” da sociedade. Um dos perigos de sua
existência estaria na habilidade de aproveitar dos “segredos
domésticos apanhados no confessionário” e da “corrupção” de
“meninos e meninas” através do ensino para mobilizar a opinião
pública de acordo com os interesses “da ordem a que pertence” e
dos “grandes da terra”. Nas pequenas cidades, o controle social
exigia das pessoas consideradas notáveis uma reputação impecável
e o poder de difamação de um pároco local, conhecedor dos piores
segredos das famílias, poderia arruinar uma carreira política ou o
seu prestígio.
Apesar
de representantes oficiais do cristianismo católico, os jesuítas
foram entendidos como o “maior desacreditador da religião de
Cristo”, “inimigos do povo”, “carrasco da população miúda”
e “sanguessugas dos pobres de espírito e dos tolos”. Sobre esse
último ponto, Agostini satirizou em uma caricatura essa relação
entre a fé e a exploração de pessoas “imbecis” e humildes
pelos frades, com a doação de seus parcos recursos sob o pretexto
do sacrifício na terra ser recompensado no céu (Cabrião,
2000 [1867], p. 197). Em outro momento, tidos como a “encarnação
da hipocrisia”, os jesuítas disfarçavam os seus desejos de
riqueza e poder através da “capa do desinteresse e da mansidão”,
como representado na caricatura abaixo.
Figura 2: “fazei o que eu digo, mas não façais o que eu faço”.
Fonte:
Cabrião,
São Paulo, n. 8, 1866, p. 61.
De
forma a deslegitimar o apelo moralista de religiosos sobre a
população, as caricaturas do semanário denunciavam a ganância e a
hipocrisia dos jesuítas nas suas condutas cotidianas. Nessa imagem,
Agostini habilmente transmitiu essa dualidade nas ações dos
“barbudos” de samarra ao construir uma cena polifônica,
dividida entre o espaço público, de aparições e condutas
calculadas por estarem em constante avaliação da multidão de
fiéis, e o espaço privado, área oculta, restrita e discreta.
O
membro da Companhia de Jesus, caracterizado pela roupa preta e o
rosário na mão, pregava do alto de uma sacada para um numeroso
público, todos em uma postura obediente escutando a exposição,
composto por homens e mulheres, diferenciação explícita pelo uso
de véu e pelo corte de cabelo. No seu verso, uma imagem refletida de
si levanta uma garrafa na direção de sua boca, gesto que sugere a
ingestão de seu conteúdo, provavelmente alcoólico para denotar uma
falha no caráter e fundamentar a denúncia do “vício”. O
consumo da bebida torna-se evidente ao observarmos no plano de fundo,
do lado oposto da multidão, duas pessoas erguendo os copos e uma
garrafa em cima da mesa. A fisionomia expansiva e alegre do jesuíta
com a garrafa na mão em oposição a figura calma e solene demonstra
a dissimulação desses agentes religiosos como ressaltado pela
legenda “fazei o que eu digo, mas não façais o que eu faço”.
Interessante
destacarmos como essa crítica frequente sobre a gula, a hipocrisia e
o fanatismo supersticioso dos jesuítas e, simultaneamente, dos
protestantes não foram atribuídos a toda manifestação religiosa
ou expressão de religiosidade. Os ataques direcionados a esse
segmento eclesiástico foi derivado de sua rigidez em aceitar
qualquer conhecimento ou conteúdo que fosse contrário aos preceitos
bíblicos e a sua intervenção “nociva” nas instâncias de poder
do Estado. Nessas condições, a ignorância, a intolerância e a
superstição eram consideradas formas de “atraso” e antagônicas
da razão e da ciência promovidas pelo “progresso” do “mundo
civilizado” defendido pelo semanário humorístico.
Inclusive,
o Cabrião
se apresentou enquanto religioso, mas sem hipocrisia, em um dos
anúncios no Correio
Paulistano,
periódico também redigido por Américo de Campos (SANTOS, 2000). Em
outro momento, em uma de suas publicações, o semanário ilustrado
condenou a conduta “desdenhosa e desrespeitosa” de ateus diante
da procissão de domingo e solicitou a intervenção da polícia
nesses casos para “fazer respeitar a liberdade de consciência em
matéria de religião” (Cabrião,
2000 [1866], p. 54). No entanto, como o próprio semanário alertou,
não era do seu interesse que os leitores aderissem ao “sórdido e
grosseiro beatério pregado pelos ardilosos jesuítas”, mas que
houvesse nestas relações um equilíbrio entre a racionalidade e a
religião.
Nesse
movimento ambíguo, o Cabrião
rejeitou a postura
e as bandeiras “retrógradas” do jesuitismo e do conservadorismo,
sem se desvencilhar da fé cristã. A oposição aos
integrantes do
clero era decorrente de seu potencial político para mobilização do
eleitorado, a sua intromissão nos assuntos públicos para impedir a
adoção de medidas “progressistas” (como, por exemplo, o ensino
laico) e na negação supersticiosa dos conhecimentos científicos.
Portanto, a sua condição “nociva” não era pela crença em um
ser divino, mas estava justamente na interferência nos assuntos
terrenos e no desprezo pelas transformações do porvir.
Além
dos jesuítas, os conservadores também foram “homenageados” nas
páginas do Cabrião.
O
maior representante conservador, João Mendes de Almeida, católico
fervoroso (BUZAID, 1956), redator do Diário
de São Paulo
e correspondente da Revista
Commercial,
ambos periódicos rivais do semanário ilustrado, foi figura
recorrente nas caricaturas de Agostini. O humor satírico das
publicações noticiava o líder saquarema em cenas comprometedoras,
exposição ridícula de forte repercussão na provinciana capital,
como ocorreu na caricatura abaixo.
Figura
3:
João Mendes de Almeida.
Fonte:
Cabrião,
São Paulo, n. 2, 1866, p. 08
No
primeiro quadro, pelo contexto extra-icônico, a representação da
locomotiva ou da linha férrea simbolizava a modernização, a
civilização e o progresso, transporte condicionado aos avanços
técnicos e materiais de uma sociedade, ideais defendidas
incessantemente pelo Cabrião
como fundamentais
para o desenvolvimento nacional. Na caricatura, a Revista
Commercial,
periódico santista conservador, foi posicionado no meio do trilho e
a frente do trem com a intenção de parar o seu avanço por meio da
força física de seus braços. O periódico, representado
parcialmente na forma humana, com um caranguejo no lugar da cabeça e
uma folha com o título do jornal no lugar do tronco, ameaçava
reduzir a pó, conforme a legenda, o “progresso maldito”.
Ironicamente, a seleção do crustáceo na imagem era uma forma de
salientar a prática dos conservadores, segundo o hebdomadário
humorístico, de andar sempre para trás ou na direção ao passado,
e a tentativa de
interromper o “progresso” também reafirmou a conduta retrógrada
dos “regressistas” diante das transformações de qualquer
aspecto daquela sociedade tradicional.
O
personagem Cabrião, do lado da estrada de ferro, observa a situação
e, apesar da impossibilidade lógica de ser bem-sucedido no seu
intento, alertou para o risco de o “gigantinho” conservador
conseguir cumprir a sua promessa. O termo “gigantinho”,
sublinhado em itálico, ao invés de enfatizar a grandeza do
periódico, zombou de um comentário da Revista
Commercial sobre o
surgimento e a circulação do Cabrião,
na qual o definiu como um “jornalzinho” (Cabrião,
2000 [1866], p. 26). Dessa forma, a probabilidade existente de
impedir o “progresso” não decorria de seu tamanho e força, mas
do poder político local de seus organizadores e interlocutores de
mobilizar a opinião pública e as autoridades do Estado para
dificultar a aprovação de medidas consideradas “modernas”,
“progressistas” e “civilizadas” como, por exemplo, a própria
extensão do transporte ferroviário no interior da província
(Cabrião,
2000 [1866], p. 99).
No
quadro seguinte, João Mendes de Almeida foi retratado como uma
tartaruga, outro animal considerado representativo dos conservadores,
pela sua lentidão característica durante a locomoção, analogia
atribuída aos membros conservadores devido à resistência de
modificar as instituições ou de se adaptar as transformações do
presente. O jogo de palavras irônicas na legenda, de duplo sentido,
apresentou ao público o “animal cascudo”, frase referente a
pessoa reproduzida e a tartaruga, ambos emblemas do partido, o
primeiro chefe da agremiação e o outro símbolo conservador.
A
representação de um respeitável político como João Mendes, chefe
de um dos partidos brasileiros mais influentes do século XIX,
provavelmente provocou o riso naquele domingo e foi alvo de
comentários do público paulista. Não sabemos ao certo a reação
do líder partidário diante do ocorrido, posto ao ridículo
publicamente, mas deduzimos um sentimento de animosidade após a
afronta e zombaria. No Cabrião,
os redatores sem identificar a pessoa ofendida, ironizou e demonstrou
o ressentimento gerado em um de seus alvos a partir da força
política e social da caricatura em atingir a reputação criada pela
imagem de “notabilidade” dos homens públicos. Na seção
“cavaqueou”, o semanário comentou como o “abafadinho”
prometeu vingar-se da “afronta” de ter sido “biografado” pelo
periódico. O “pançudo”, característica que retoma a
representação da pessoa egoísta preocupada apenas com os seus
interesses particulares, apesar de revoltado com a situação, era o
“tipo” ideal para ser caricaturado no Cabrião,
“distinção” reservada as pessoas como o “pandega”. Por fim,
a redação sugeriu ao homem para não se irritar com a ação do
humorístico, pois, não se intimidariam com a vingança prometida
(Cabrião,
2000 [1866], p. 35).
Contudo,
se um comentário ou uma caricatura já era capaz de provocar a ira
de pessoas como o “abafadinho pançudo”, imagina diversas
passagens e imagens dedicadas à João Mendes. O enfoque dos
redatores do semanário humorístico nesse mote não foi apenas pelo
fato de Mendes presidir o Partido Conservador, mas também pela sua
participação na redação do Diário
de São Paulo,
somada a sua postura extremamente religiosa e a ação judicial
movida como advogado de Candido Silva, proprietário do Diário
nesse período, contra a caricatura de Agostini sobre o dia de
finados. Nesse sentido, essa relação entre o jesuitismo, o Diário
e a figura do chefe
conservador, todos os elementos considerados como manifestação de
atraso e um obstáculo para o “progresso civilizatório” foi
condensada na próxima caricatura.
Figura 4: O jesuitismo do
Diário de São Paulo.
Fonte:
Cabrião,
São Paulo, n. 4, 1866, p. 08.
João
Mendes, vestido de samarra e com um rosário na cintura, prepara uma
feijoada “no exercício de suas funções”, nomeada como o artigo
quinto da Constituição, estatuto responsável pela união entre o
Estado e a Igreja Católica, elevada a religião oficial do Império.
Alguns ingredientes estão dispostos em cima da mesa, como a pimenta,
o angu, o cuscuz, o molho e o pernil, itens referentes a astúcia, ao
ensino livre, aos protestantes e ao jejum, respectivamente. A sopa,
representação das irmãs de caridade, apesar de estar na mesa,
configura um prato pronto, um alimento a parte da feijoada, assim
como a instituição religiosa em São Paulo, ligada à Igreja
Católica, mas autônoma e independente nas suas ações. O pernil,
rico em gordura e proteína, contraditoriamente descrito como jejum,
ação recomendada pelo clero como forma de expiação em períodos
de restrição, insinua e ironiza mais uma vez a gula e a fartura nas
refeições dos párocos. O angu e o cuscuz, ambos de origem
africana, apesar de serem produtos típicos da culinária brasileira,
não são utilizados na preparação da feijoada. Respectivamente, o
ensino livre e o protestantismo, após a reafirmação do padroado e
da inclusão da instrução primária como um dos direitos civis dos
cidadãos na Constituição de 1824, excluiu o culto de religiões
não católicas em espaços públicos e legalizou a presença do
clero nacional na educação promovida pelo estado. Por isso, tal
como o angu e o cuscuz, não estavam contemplados na
feijoada/Constituição.
Na
figura 4, notamos que enquanto o líder conservador mexia a feijoada
com a mão esquerda, a outra segurava uma panela de molho para
adicioná-lo no caldeirão. A indicação da “intolerância” como
o componente do recipiente para temperar a feijoada exibiu a
percepção dos redatores sobre a elaboração do projeto de lei,
marcado pela intransigência e a opressão das liberdades, fenômeno
consequente do fanatismo religioso e postura reproduzida pelo
“redator chefe”. O pote de pimenta, posicionado um pouco mais
distante do cozinheiro, do mesmo modo que a astúcia, possuí uma
mordacidade “apimentada”, usada em pequenas doses e sem exageros,
de forma sutil e ardilosa, para atingir um gosto particular ou um
resultado ambicionado.
O
aspecto negativo e maligno da redação do Diário
e da relação entre a Igreja e o Estado foi construído a partir da
combinação da vestimenta, do ato de cozinhar no caldeirão e na
decoração do ambiente com cabeças de bois e animais mortos
pendurados, características estereotipadas pertencentes ao
imaginário popular sobre a bruxaria e a magia negra.
Em cima, o nome do jornal foi formado por figuras macabras
encapuzadas, provavelmente, jesuítas pela semelhança entre as
roupas e o uso do rosário. A derrisão sobre o Diário
e seus organizadores foi uma forma de enfatizar a parcialidade de
seus conteúdos, posicionamento derivado de sua postura política e
religiosa, vínculo tão presente na folha que o seu título na
caricatura foi até formado pelos próprios integrantes da ordem
eclesiástica.
As
representações e os comentários humorísticos sobre a religião e
as personalidades conservadoras promoveram um sentimento de revide e
desforra entre os periódicos da província paulista, como foi o caso
da folha supracitada. O surgimento do Cabrião
foi interpretado da seguinte forma pelos organizadores do Diário.
Sahio á luz uma folha chocarreira
e boçal, com o titulo de Cabrião;
— titulo que bem lhe quadra, porque Lucifer é tambem o acerrimo
Cabrião
do gênero humano! Tem essa folha por seu regabofe
as fraquezas do próximo, e, (dobrado escândalo!) o depravado
sentimento de ridicularisar o que pertence á Santa Religião do
Estado, assumpto que por sua sublimidade não é para os beiços dos
seus redactores; mas.... cuidado que não lhes fique o osso
atravessado na garganta! Não admira o apparecimento desse pasquim
zurrador;
o que produz um amargoso reparo é correr como certo achar-se entre
esses redactores um joven que até aqui tem passado como pessoa
assisada, circumspecta, geralmente estimada, e casado com uma senhora
de não vulgar educação e eminentemente religiosa! (Diário
de São Paulo, 1866, n.
350, p. 02-03, grifo do autor).
Concebido
como um “pasquim”, “zurrador” e “boçal”, os redatores
intencionaram desqualificar o semanário ilustrado como algo apenas
ofensivo e injurioso e a novidade da linguagem visual como obra de
“depravados” “rabiscadores” focados em “escarnecer” os
defeitos alheios e “ridicularizar o que pertence a Santa Religião
do Estado”. Um detalhe interessante foi o pesar do Diário
pela participação
de um jovem estimado e “casado com uma senhora de não vulgar
educação e eminentemente religiosa” na redação do Cabrião.
O comentário era sobre Antonio Manoel dos Reis, homem católico,
formado na Academia de Direito em 1864 e autor de livros como Minhas
Inspirações,
Ensaios poéticos
e Album literário,
obras de prestígio entre a população e os críticos literários
(SANTOS, 2000). Aliás, ainda segundo Santos (2000, p. XXXIV),
posteriormente a publicação do Cabrião,
o jornalista, advogado e escritor aderiu ao Partido Conservador para
angariar cargos e nomeações, desejo não suprido pelos seus antigos
correligionários, considerados ingratos por Antonio dos Reis.
A
rivalidade entre o Cabrião
e
o Diário
durou
até o fim da direção de Candido Silva, anunciado e comemorado
inclusive pela revista ilustrada. O novo proprietário foi Antônio
da Silva Prado,
importante liberal paulista, e as divergências entre ambas ficaram
restritas aos períodos de disputas eleitorais devido a cisão do
Partido Liberal.
Os
ataques aos conservadores e ao clero delimitaram o outro, considerado
retrógado e atrasado, mas não absteve os representantes e as
lideranças liberais. Nas campanhas eleitorais e nos governos
liberais da província de São Paulo, independente de pertencerem ao
mesmo partido, os redatores dedicaram parte de seus conteúdos para a
avaliação da administração e da postura de personalidades do
Partido Liberal. As menções negativas a Tavares Bastos, presidente
da província de São Paulo, e ao gabinete de Zacarias
de Góis
e Vasconcelos
transformaram o periódico em uma figura indesejada tanto pelos
conservadores quanto por seus correligionários. A perseguição de
todas as direções foi destacada na seção “Horas de desespero”.
Estou triste! Triste como o
desgraçado que vio eclipsar-se o brilho da sua estrella! Não sei
que mal tenho feito aos homens, para ve-los conspirados contra mim.
Sempre amei a verdade, sempre guiei-me pela vereda do justo; sobre a
minha fronte ainda joven não peza o remorso de um crime. [...] De
tantos amigos que eu possuia, bem poucos me restam hoje! Muitos
amigos atraiçoáram-me no momento em que eu enchia de beneficios;
outros desappareceram como o relampago, desde que me viram em luta
com a adversidade (Cabrião, 2000 [1867], p. 190).
As
consequências de criticar tudo e todos comprometeram a manutenção
e a continuidade da circulação da revista. O “abandono”
crescente de membros liberais das fileiras do Cabrião
ocorreu conforme recrudesceu o seu posicionamento sobre temas como as
campanhas eleitorais, o recrutamento militar e a questão religiosa.
Qualquer candidato com ambições de ascender na ocupação de cargos
na capital paulista precisava aderir as determinações do partido,
condição conflitante com as representações pejorativas das
principais lideranças partidárias no semanário.
Uma
dessas lideranças, Tavares Bastos, presidente da província de São
Paulo, foi criticado e responsabilizado pelas ações arbitrárias de
autoridades políticas locais ao desrespeitarem à Constituição no
decorrer da política de recrutamento para a guerra do Paraguai.
Nesse sentido, o despotismo do aparelho de Estado, reproduzido no
alistamento forçado de pessoas legalmente dispensadas dos serviços
militares, e a corrupção para a isenção das pessoas
“apadrinhadas” receberam destaque nas suas publicações.
Figura 5: A violência do
recrutamento e a indignação da opinião pública.
Fonte:
Cabrião,
São Paulo, n. 10, 1866, p. 08.
Na
legenda, a representação da opinião pública chama a atenção de
uma autoridade política, provavelmente José Tavares Bastos, para
acabar com os casos de “arbítrio e violência praticados a título
de recrutamento” na capital paulista. De longe, no segundo plano,
guardas nacionais armados atacam quem está passando na rua e a
confusão generalizada foi construída por meio da fuga para todos os
lados de homens, mulheres, crianças e até de cachorros. A busca por
assentar praças é tão incisiva que guardas perseguem potenciais
recrutas pelos telhados e janelas dos prédios e um dos homens é
arrastado pelos pés para o quartel. A “opinião pública”,
indignada com a situação, aponta com a mão direita para a confusão
e entrega uma luneta para o presidente, ato ignorado pelo mesmo.
No
entanto, sem recuos e diante de tal arbítrio, os redatores cobraram
um posicionamento até do monarca para coibir os abusos.
Figura 6: “Constituição:
a Soberana nacional”.
Fonte:
Cabrião,
São Paulo, n. 26, 1867, p. 04
No
contexto intra-icônico da caricatura,
uma mulher
majestosamente vestida, representada como a Constituição, com o
livro de “lei” debaixo do braço e com o dedo em riste para D.
Pedro II, exigiu a aplicação de suas regras e determinações, em
defesa do povo, frequentemente desrespeitado pelos “atos de
violência e arbítrio” praticados pelas autoridades no poder.
Dessa forma, a
cena construiu
uma posição ativa e de autoridade da mulher/constituição,
percepção reforçada pela resposta gestual do monarca com a mão
direita aberta como se tentasse explicar e se eximir da culpa
imputada. A imagem expressou uma das concepções de uma ala liberal
sobre a supremacia do poder constitucional e a necessidade de
supressão do poder Moderador do monarca, como destacou a fala da
Constituição na legenda ao afirmar-se a “Soberana do país”.
Para ouvir as inquietações e as exigências, o imperador desceu de
seu trono, posicionado acima do nível do chão, comportamento que
enfatizou, sem ofender ou menosprezar a sua figura, o papel de
“protetor” do Estado de direito,
posição política
também submetida a Constituição.
No
entanto, apesar de defender a revogação do quarto poder, o Cabrião
não questionou o regime monárquico e, muito menos, aderiu ao
movimento republicano no período de sua circulação. O semanário
era liberal, apegado aos direitos constitucionais expressos na Carta
de 1823, aprovada na Assembleia antes de sua dissolução realizada
por D. Pedro I. Entre as ramificações ideológicas manifestas no
Partido Liberal, os redatores se associaram a facção mais radical,
anticlerical, contrária as alianças com os setores considerados
retrógrados.
Os
desentendimentos entre os liberais se intensificavam a cada eleição
e, como uma última tentativa de unificar as pautas partidárias,
Agostini produziu uma caricatura para realinhar os dissidentes para
que juntos combatessem o “despotismo inconstitucional”.
Figura 7: "A união faz a força".
Fonte:
Cabrião,
São Paulo, n. 18, 1867, p. 04-05
Na
imagem, o piemontês representou as principais lideranças de cada
facção, divididos em liberais e liberais dissidentes. Do lado
esquerdo, Bonifácio lidera os “liberais” com a bandeira na mão,
acompanhado à sua esquerda do brigadeiro Bernardo José Pinto Gavião
Peixoto, presidente da província paulista entre 1847 e 1848, de João
da Silva Carrão na sua direita, também presidente de São Paulo
entre 1865 e 1866, seguido um pouco mais ao fundo por Joaquim
Floriano de Toledo, vice-presidente de Carrão, figura inclusive
homenageada pelo Cabrião
no fim de seu mandato em 1866.
Segundo Santos (2000, p. XVIII), também estavam presentes Joaquim
Roberto de Azevedo Marques, proprietário do Correio
Paulistano
e responsável pela impressão do primeiro trimestre do Cabrião,
além de Antônio Prado, dono do Diário
de São Paulo
após sua fase conservadora.
Do
lado direito, Luiz Gama, ex-redator do Diabo
Coxo, porta a
bandeira dos “liberais dissidentes”, junto com Martim Francisco e
Américo de Campos, ambos a sua direita. O posicionamento do redator
do Cabrião na
ala dissidente corrobora com a argumentação desenvolvida nesta
pesquisa e, a partir do fim da conciliação em 1868, esse grupo
passou a defender propostas de reforma social e política
consideradas radicais, momento de ruptura partidária com o regime
monárquico e escravagista.
Cada
indivíduo da imagem está com um bastão na mão, o que reforça a
ideia de que as “disputas” eleitorais ocorriam tanto nas urnas
quanto no corpo a corpo. No centro, o personagem Cabrião clama aos
seus correligionários para se unirem em um mesmo ideário liberal
com o intuito de fortalecer o partido, fragilizado por suas divisões
ideológicas, fragmentação demonstrada pela distribuição de seus
integrantes em dois planos verticais. A frase “união faz a força”
da bandeira estendida pelo Cabrião ironizou a débil situação dos
liberais e alertou para a necessidade de uma base coesa caso
desejassem
fortalecer o
partido em torno de propostas para garantir as liberdades e combater
os abusos contra os direitos do cidadão. Contudo, o apelo foi
ignorado por seus partidários e na eleição seguinte os
conservadores venceram, acontecimento comentado e retratado inúmeras
vezes no periódico. Em uma caricatura, João Mendes foi representado
do alto de um mastro, posicionado de modo ofensivo, celebrando a
vitória eleitoral juntamente com tatus e tartarugas (Cabrião,
2000 [1867], p. 129), animais que representavam as ações
subterrâneas e a lentidão dos “cascudos”.
O
desânimo e a indignação dos redatores com os resultados eleitorais
acentuaram a oposição ao governo de Tavares Bastos, além de
criticar de forma mais incisiva as personalidades liberais envolvidas
em alianças políticas e, até mesmo, os periódicos liberais da
base governista como o Diário
(Antônio Prado) e o Correio
Paulistano (Azevedo
Marques). O isolamento
progressivo do semanário apenas aumentava ao atacar os
conservadores, os jesuítas, as irmãs de caridade, os protestantes,
o clero nacional, os deputados regionais, os juízes, as forças
policiais, entre tantos outros segmentos urbanos e rurais presentes
no cotidiano da província paulista.
Se o aspecto político atraiu diversos problemas para o semanário, a
questão religiosa ajudou a torná-lo intolerável. No
número 51º, no dia 29 de setembro de 1867, com suas finanças
arruinadas, o até breve dos redatores se transformou em um adeus
para seus assinantes.
CONsiderações
finais
A
fundação do Cabrião,
em 1866,
representou a consolidação da revista ilustrada como meio de
difusão de notícias e valores culturais na imprensa paulistana,
cujo único exemplar anterior foi o Diabo
Coxo, periódico
também ilustrado por Angelo Agostini. As ideias defendidas pelos
redatores do Cabrião
estavam calcadas nas concepções ideológicas do partido liberal,
porém, mais alinhadas as posturas políticas da facção considerada
“exaltada”, favorável ao ensino laico, a separação da Igreja
do Estado, de uma descentralização política e de um conceito de
progresso associado a cultura eurocêntrica.
As considerações
negativas do Cabrião
sobre os seus opositores e desafetos como os conservadores, os
jesuítas, determinadas personalidades liberais, as forças policiais
a nível local, entre outros segmentos, deterioraram a durabilidade
da circulação do periódico. As ações de seus adversários
extrapolaram ocasionalmente o embate jornalístico e, no decorrer das
publicações, a redação foi depredada, seus funcionários e
leitores vítimas de perseguições políticas, os redatores
ameaçados fisicamente e processados judicialmente. Dessa forma,
isolado politicamente e arruinado financeiramente, o Cabrião
não resistiu e
terminou a sua impressão no término de seu primeiro ano.
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