Carnavalização da política ou politização do carnaval: carnaval carioca por meio das charges (1930-1937)
Carnivalization
of politics or politicization of carnival? cartoons and carnival
“carioca” (1930-1937)
Carnavalización
de la política o politización del carnaval: carnaval carioca por
medio de las caricaturas (1930-1937)
Alberto
Gawryszewski
Doutor
em História Econômica pela Universidade de São Paulo (1996);
Pós-doutorado em História Social pela Universidade Federal do Rio de
Janeiro (2004); Pós-doutorado em História pela Universidade Federal
Fluminense (2013). Professor Associado do Departamento de História da
Universidade Estadual de Londrina.
Fronteiras,
v. 20, n. 35 - 2018
Editora
da UFGD
Recebido
em: 02/06/2018
Aprovado
em: 02/08/2018
Resumo:
O objetivo deste texto é demonstrar como a charge, relacionada ao
tema do carnaval, pode ser um importante instrumento de compreensão
de um momento histórico. No caso, o recorte temporal é entre 1930 e
1937 e o recorte espacial é a cidade do Rio de Janeiro. As imagens
foram retiradas de duas importantes revistas brasileiras: O
Malho e Careta.
Palavras-chave:
Cidade do Rio de Janeiro. Cartoons. Imprensa: Pedro Ernesto.
"Revolução" de 30.
Abstract:
The objective of this text is to show how cartoons related to the
theme of carnival can be an important tool to understand a historic
time. In this case, the period is from 1930 to 1937 and the place is
Rio de Janeiro City. Images were taken from two important brazilian
magazines: O
Malho and
Careta.
Keywords:
City of Rio de Janeiro. Cartoons. Press: Pedro Ernesto. "Revolution"
of 30.
Resumen:
El objetivo del texto es demostrar cómo las caricaturas, relacionada
al tema del carnaval, puede ser un importante instrumento de
comprensión de un momento histórico. En el caso, el recorte
temporal es entre 1930 y 1937 y el recorte espacial es la ciudad de
Río de Janeiro. Las imágenes fueron retiradas de dos importantes
revistas brasileñas: El
Malho y
Careta.
Palabras
clave:
Ciudad de Río de Janeiro. Cartoons. Prensa: Pedro Ernesto.
"Revolución" de 30.
INTRODUÇÃO
Este texto
visa a apresentar as charges presentes nas revistas ilustradas de
humor O Malho
e Careta,
ambas publicadas na cidade do Rio de Janeiro. A escolha dessas
revistas se deve ao fato de que as mesmas tinham grande tiragem,
circulação nacional e se dirigiam a um público da classe média e
alta brasileira. O recorte temporal (1930-1937) escolhido está
voltado principalmente para a administração do prefeito Pedro
Ernesto (1931-1936), quando se oficializou o carnaval carioca no
calendário turístico da prefeitura.
A
caricatura/charge seria o carnaval ilustrado? Quais as relações
entre o novo regime político que se instaura no país em 1930 e essa
nova postura com o carnaval popular? A charge política e a de humor,
com seus traços e diálogos, podem nos ajudar a compreender o
período em questão? Assim, a seleção das charges utilizadas está
dentro dos objetivos deste texto, ou seja, compreender a relação do
carnaval e política por meio da charge e do riso. A charge é vista
como um importante instrumento de construção de uma visão crítica
do mundo pelo artista do traço.
A revista
Careta
é, hoje, uma das publicações mais usadas pelos pesquisadores
brasileiros como fonte de pesquisa. Muitas razões existem para isso,
seja a facilidade de encontrá-la completa (em Bibliotecas, no
formato impresso, ou em sites, no formato digital), seja pela sua
longevidade (52 anos ininterruptos), e pela grande quantidade de
imagens contidas (fotografias, charges, caricaturas e propagandas) e
textos.
Careta
foi lançada em 1908 na cidade do Rio de Janeiro, em um momento
distinto de nossa história e da história da imprensa. A cidade
carioca tinha passado por profundas transformações urbanísticas e
arquitetônicas na perspectiva de mostrar ao mundo um novo Brasil,
mais dinâmico e moderno. Careta
fazia parte desse novo mundo, dividindo espaço com outras
publicações ilustradas (em especial O
Malho), que também surgiram nesse
período. O desenvolvimento de novas técnicas de impressão, que
possibilitava a inclusão de imagens, até em cores, e grandes
tiragens, levou ao barateamento do valor unitário das publicações
e à capacidade de atingir um público inédito e variado, tanto
local como nacional e internacional. Além da grande tiragem
possível, a expansão da propaganda - com
uso de imagens e diversos formatos de fontes - ajudou na arrecadação
monetária para as revistas, dando um caráter profissional e
permanente aos seus colaboradores.
Fundado pelo
empresário Jorge Schmidt, ex-diretor e fundador de outras revistas
ilustradas, Careta
era um semanário (saía aos sábados), com cerca de 40 páginas, e
tinha um caráter eminentemente comercial, como dito no próprio
editorial de abertura: “Todavia, nossa esperança é justamente que
o público morra pela Careta,
a fim de que ela viva. E, feita cinicamente essa confissão egoísta
[...]”. Ainda conforme este: “[...] Careta
é feita para o público, o grande e respeitável público, com P
maiúsculo!” (Careta Ano
I, nº 01, 06/06/1908, p.03). Este seria um público seleto, formador
de opinião, intelectual e refinado, mas não se quer dizer que seu
alvo também não fosse a população mais humilde. As charges e
caricaturas coloridas em sua capa, a qualidade gráfica, as colunas
variadas (criadas no decorrer do tempo), repletas ou não de
fotografias (de festas, bailes, esportes, solenidades, etc.),
caricaturas, charges, charadas, tiradas de humor, etc., atraíam um
público maior do que a elite financeira e intelectual, seja pelo
acesso direto pela compra, seja pelo acesso indireto em locais
públicos (barbearias, engraxatarias, etc.). Portanto, o alcance da
revista Careta
foi extraordinário para o período de sua existência. Deve-se dar
destaque ao fato de que a maioria da população brasileira era
analfabeta e, assim, as imagens possuíam potencial de atração e,
também, de uma interpretação diferenciada.
Se no início
a proposta da Careta
era unicamente fazer “caretas”, isso foi mudado no decorrer do
tempo, em especial a partir de 1930, quando a situação política a
exigiu menos humorística. Na realidade, o debate político,
econômico e social do país adquiriu um maior papel em seu conteúdo,
incluindo o uso da charge e da caricatura nesse viés.
Em um
editorial de 1953, Careta
escreveu: “[...] fomos anti-revolucionários em 1930 como em 32; em
1935 como em 45 e se-lo-emos hoje como amanhã. Do mesmo modo, somos
anti-comunistas pelos mesmos motivos por que somos anti-facistas e
anti-nazistas, e porque somos anti-franquistas, anti-peronistas e
anti-getulistas” (Careta,
01-04-1953, p. 03). Assim, Careta
nunca foi imparcial, promovendo debates sob sua ótica sobre o que
estava ocorrendo no país nas áreas econômica, social e,
especialmente, política.
A revista O
Malho foi fundada em setembro de
1902 por Luis Bartolomeu de Souza e Silva. Aqui praticamente se
poderiam repetir as linhas pretéritas sobre Careta.
Segundo Tenório (2009), seu fundador era mais um intelectual
desiludido com a república implantada, inclusive sendo preso por
defender prisioneiros políticos da revolta da Armada (1893) em
artigos de jornais. Era composta de várias seções, com muitas
charges, fotografias e artigos. Seu público leitor seria amplo,
atingindo desde a classe operária desqualificada até uma classe
mais favorecida financeiramente. Tal qual a revista Careta,
O Malho teve
vida longa, 52 anos (1902 a 1954).
Seu título nos remete à
expressão “malhar”, que significaria acentuar aspecto negativo
(geralmente) uma pessoa ou coisa por meio da zombaria. Sendo a charge
originalmente pensada como significando “carregar”, intensificar
uma visão negativa de uma pessoa ou situação - em geral por meio
do humor -, o uso dessa expressão artística de forma intensa pela
publicação se justificava. Contou com desenhistas de grande
qualidade e expressão, como por exemplo, Alfredo Storn, Benedito
Calixto e Raul Pederneiras.
O Malho, intitulado como um
“semanário Humorístico, Artístico e Literário”, teve como
símbolo o martelo (o malho) e em sua primeira capa apresentou um
ferreiro com esse instrumento de trabalho e uma bigorna. Ou seja, as
informações e as críticas contidas na revista seriam forjadas a
marteladas, ou as marteladas estariam disponíveis nos comentários
dos articulistas e desenhistas da mesma. Seria a oficina a redação,
o martelo a caneta, e a bigorna a mesa de trabalho? Em seu primeiro
editorial, entre outras linhas, escreveu:
É
de praxe que um jornal que se apresenta desfile perante o leitor
boquiaberto um rosário
de
promessas a que se chama pomposamente – o programa. Iconoclasta de
nascença, o Malho
começa
por atacar e destruir a praxe: não tem programa. Ou, mais
exatamente, tem todos, como o seu nome bem o indica: ele é o Malho;
tudo que passar a seu alcance será a bigorna. O povo rirá ao ver
como se bate o ferro nesta oficina e só com isso ficaremos
satisfeitos, com a tranquila consciência de quem cumpre um alto
dever social e concorre eficazmente para o melhoramento e progresso
da raça humana. [...], Pondo em contribuição todos os elementos
necessários ao desenvolvimento do riso, ainda que se riam uns à
custa dos outros e nós à custa de todos, temos prestado ao homem em
geral e aos que habitam esse canto do planeta, em particular, tão
relevante serviço, que não haveria remédio senão criar o governo
uma medalha de mérito para nos galardoar, já que esta República,
que também não é a que sonhávamos, quando mamávamos, teve a
infeliz ideia de abolir o Hábito de Cristo, ficando totalmente
desarmada para testemunhar a gratidão da pátria pelos
filhos
que
assim
abnegadamente
a
sabem
servir.
Em matéria de abnegação, porém, não há ninguém que nos exceda
e, já que nos metemos nisso, iremos até o fim; faremos esta salutar
reforma de costumes e numa quadra em que todos choram pitangas,
estalaremos o riso são, o riso honesto, o riso próprio do homem,
sem reclamarmos sequer do Sr. Campos Sales que se sujeita a apanhar
mais três dúzias de descomposturas por cumprir o seu elementar
dever de condecorar-nos! Cremos que quem assim fila, merece só por
isso a mais completa confiança do público [...] Em torno dele só,
só há quem lhe fale de coisas tristes[...] Ora, em meio desse coro
fúnebre de tristezas e lamentações, soa cantante o bimbalhar do
Malho,
tirando dessas bigornas sons alegres! É um cartaz de cores vivas no
meio de uma decoração de pompa fúnebre; é a nota vibrante de uma
cançoneta brejeira a interromper um requiescat
de gatos pingados; é o verde da esperança a reflorir os espíritos
abatidos e desolados; é o vermelho da blague a dissipar a melancolia
geral; é um zé-pereira formidável entrando audacioso e impiamente
pela solenidade de uma semana santa; é a audácia, é a alegria, é
a sátira, é a crítica, é a mocidade mordaz e irreverente, é a
saúde, com a breca! (O
Malho,
20/02/1902).”
Nesse trecho de um longo editorial
vemos que a ironia se fez presente desde as primeiras linhas ao se
declarar como uma revista iconoclasta. Ao não ter programa, ou ter
todos, O Malho se apresenta como uma revista livre, sem
ligações com grupos (poderosos), visando exclusivamente atender às
demandas da sociedade, de seu leitor. Este, ao ver bater o ferro na
bigorna, teria a certeza de que ali (na redação) estaria se
produzindo algo que lhe agradaria, ou mais, o levaria a ser um
cidadão melhor após lê-lo, principalmente por meio da troça. Sua
função, portanto, seria servir à Pátria pelo riso, já que este
faz parte da sociedade.
Propõe, entretanto, um riso
honesto (então há um riso desonesto?), que é próprio do homem.
Seria o riso honesto o que produz consciência? Mas é também o que
traz alegria, riso descomprometido em meio à crise geral que vivia a
população? O Malho seria um Zé Pereira, o personagem
carnavalesco tocador de bumbo, que apesar das críticas desde o
século XIX, não parava de tocar seu instrumento ensurdecedor
anunciando a alegria em meio ao mundo real. Portanto, O Malho
trará a audácia da crítica, a irreverência da análise e o
riso como fonte da saúde.
Segundo
a página da Fundação Casa de Rui Barbosa, tal qual a Careta,
a revista O
Malho combateu
a aliança política que apoiava a candidatura de Getúlio Vargas à
presidência do Brasil e não apoiou o golpe de 1930 (“revolução
de 30”), sendo sua redação empastelada, sua sede incendiada e a
publicação impedida de circular por um breve período
(http://omalho.casaruibarbosa.gov.br/).
Para
este trabalho foram coletadas cerca de 100 charges envolvendo o
carnaval. Destas foram retiradas 21 que compõem o quadro analisado
em linhas futuras. A seleção final levou em conta a dimensão e a
proposta deste texto. Assim, muitas charges que ajudariam a confirmar
as análises apresentadas aqui, bem como aumentar a visibilidade da
relação carnaval, política, riso e charge, ficaram de fora.
A
escolha do período deste texto se refere, em especial, ao tempo em
que Pedro Ernesto Baptista esteve na administração da cidade do Rio
de Janeiro (1931-36), primeiramente como interventor (1931-1935) e
depois como prefeito eleito (1935-36). Foi em sua gestão que o
carnaval passou a figurar na agenda de turismo da cidade e quando as
escolas de samba começaram a receber verbas municipais.
Este
trabalho comporta duas divisões, a saber: a primeira, uma visão
geral do que seria o conceito de charge e uma tentativa de localizar
o riso historicamente e sintetizar o riso, o risível, em alguns
estudiosos sobre o tema, sem, contudo, procurar esgotar o assunto,
pelo contrário, apenas despertando o interesse e ajudando na análise
posterior do texto.
A segunda
parte busca relacionar o riso, o carnaval, a política brasileira e
as charges, ou seja, como os chargistas de Malho
e Careta
compreenderam esse período histórico construindo imagens que
provocavam o riso, a crítica e outras reações, tendo como pano de
fundo o carnaval e a política. Esta parte é subdividida em duas, o
processo de oficialização do carnaval e a política nacional, ambas
focando na relação entre o riso, o risível e o carnaval.
A
CHARGE, O RISO E O RISÍVEL
O
que é uma charge, o que a compõe, qual seu sentido, a quem se
dirige e por quê? Enfim, as perguntas podem ser muitas. Não se
pretende responder todas, não há espaço e não se faz necessário
para este momento.
Uma
charge é um produto artístico impresso, que pode ser isolado, estar
dentro de uma publicação impressa e, atualmente, também no formato
digital (inclusive com movimentos). Discutindo apenas as que foram e
são publicadas em papel, são compostas por desenho ou desenhos
(pessoas, animais, prédios, florestas, maquinários, enfim, tudo que
possa ajudar a construir a mensagem), cores (dependendo da tecnologia
disponível e da publicação), escrita (enunciado, título,
narrativas, diálogos entre os personagens, identificação destes
etc.) e podem estar alojadas em um retângulo ou quadrado. Os
personagens podem ser públicos ou desconhecidos, vir em forma de
caricatura ou não. A charge pode estar vinculada a alguma notícia
do jornal, inclusive a ilustrando, ou apenas estar ligada à fato
notório. Sua localização no jornal e na página podem valorizá-la,
a fim de ser mais vista, estar destacada. Notadamente é considerada
como formadora de opinião e conter traços de humor, causando o
riso. Portanto, o riso pode ser causado pelo conjunto da obra, pelo
inesperado ao se concluir a mensagem produzida (pretendida), pela
caricatura de um dos personagens etc.
Não
se trata de uma realidade, mas de uma perspectiva produzida pelo
artista do que está ocorrendo à sua volta. É um tema que possa
interessar ao público leitor. A relação artista e proposta
política do jornal deve ser levada em consideração, pois o artista
é um empregado da empresa jornalística e, como tal, deve atender às
demandas do patrão. Pode ocorrer uma junção de interesses entre
ambos, seja na imprensa engajada (anarquista ou comunista, por
exemplo) ou na imprensa burguesa (ideais liberais, democráticos ou
autoritários). Nesse sentido, a aceitação do produto do artista
também deve estar em sintonia com o leitor, não apenas no tema, mas
na solução proposta, ou seja, o sentido produzido. Se a charge
desqualifica um fato, desmoraliza uma instituição ou destrói a
moral de uma pessoa, o leitor pode reagir de forma variada frente à
mesma. Por exemplo, pode discordar, mas a beleza plástica do desenho
e a perspicácia do desenhista fazem o leitor admirar a obra, mesmo
não concordando com seu conteúdo. Pode gerar um riso ou uma
gargalhada se o leitor concordar com a crítica contida, achando os
desenhos cômicos e/ou a crítica relevante. Ele pode ter raiva da
obra, se o que está sendo apresentado for ofensivo aos seus ideais.
Portanto, o riso não necessariamente está presente na charge, nem
esta é obrigatoriamente crítica ou formadora de opinião. O riso
crítico, denunciador, desqualificado fica por conta da cumplicidade
entre o leitor e o artista. Não havendo essa relação comum,
dificilmente haverá o riso, pois não há o risível.
O
chargista deve conhecer as técnicas disponíveis para melhor tirar
proveito e produzir uma charge mais qualificada em termos visuais.
Tem que conhecer bem os fatos e os personagens (comportamento social
e político), quem são seus leitores de suas obras, a quem ataca
e/ou defende. Pode colocar títulos, indicações escritas nos
personagens, nomeação destes nos diálogos existentes, fazer
relações claras com a notícia vinculada e, principalmente,
produzir uma linguagem compatível com seu leitor. Assim procedendo,
se há uma proposta de formação de opinião, a necessidade de
evitar uma liberdade de pensar do leitor ajuda, isto é, evita que o
mesmo possa ler de forma diversa da pretendida. Se deseja uma livre
interpretação ou acredita que o leitor vá entender da forma que
pretenda, deve fazer com que o quebra-cabeça sugerido pela imagem
(desenho, enunciado, diálogos, pano de fundo, personagens etc.),
possa de ser visualizado pelo leitor e ter sentido para, assim,
conseguir formar opinião sobre a obra (positiva ou negativa).
A
literatura pertinente apresenta diversos tipos de
caricaturas/charges: de costumes, social, política, de humor,
ideológica, entre outras (GAWRYSZEWSKI, 2008 e 2010; CARMONA, 2003;
LIMA, 1963). As charges de costumes, de humor e social visam
primordialmente o riso, podendo trazer críticas ou não ao que é
retratado. Podem reforçar preconceitos ou denunciá-los; seguir
consensos ou contestar o status
quo; trazer a ironia, o
deboche, a ambivalência ou dualidade, componentes ou não da
reflexão e/ou do riso. As charges políticas são mais opinativas,
ligadas a fatos ou acontecimentos políticos, sociais e econômicos,
nacionais ou internacionais (guerras, por exemplo). Em geral têm um
alvo específico (individual ou coletivo), o pano de fundo pode estar
relacionado com a época do ano, a fato externo ou interno e a
linguagem usada pode, igualmente, reforçar a mensagem ou ajudar a
compreender o fato retratado. Pode causar o riso, mas pode gerar um
estranhamento no leitor por formar sua opinião, dar consciência de
um fato ou ato político o qual não havia compreendido ou
desconhecia, ou possuir leitura diversa da apresentada pela imagem.
Portanto, uma caraterística da charge política é desvendar,
desnudar uma realidade que estava oculta aos olhos do leitor.
Portanto, a charge e a caricatura política possuem um grau de
ambiguidade, uma carga emocional que a caricatura comum, a charge
comum, a de costumes e de humor, em geral, não contêm.
Por
fim, não diferindo muito da charge política, há a charge
ideológica, ou seja, uma imagem de personagem político
podendo abranger também o fato político envolvido na questão
proposta na ilustração, possuindo a agressividade como essência,
onde o humor não é o objetivo final, mas pode existir de forma
irônica, visando denunciar o caráter do retratado. O uso do
grotesco, da zoomorfia, da busca da equivalência com uso de símbolos
políticos, é uma de suas possibilidades.
Sintetizando, se a base de algumas
charges é o humor, o fazer o riso, a caricatura política e a
ideológica estão mais voltadas para embates político-ideológicos,
ou seja, defesa de ideais políticos e sociais. Se as demais têm sua
vida presa ao seu espaço e tempo, estas duas têm vida mais
duradoura, pois extrapolariam limites territoriais e temporais. Com
carga agressiva e de crítica forte, denunciam a situação cotidiana
do cidadão, desnudando e/ou denunciando o agente, a causa das
dificuldades vividas. O humor não necessariamente está presente,
podendo ser substituído pelo ódio ou rancor, em vista à denúncia
apresentada. Elas podem fazer o riso, mas a formação de opinião
faz perder a graça. O riso se transforma, a reflexão está posta e
a compreensão do fato/personagem/situação pode, inclusive, negar a
alegria.
Visto que a
charge tem o poder de causar o riso, de produzir o risível, de
propor uma visão de mundo, de desqualificar uma personalidade
pública, uma instituição ou corporação inteira ou mesmo um
regime político; visto que a charge pode causar estranhamentos ao
leitor pelo seu poder de formação de opinião, de desmistificar e
criticar o estabelecido; compreendendo a possibilidade de sua
extensão, do grande público que pode abarcar (no caso da imprensa
escrita) e do poder de persuasão, nada de se estranhar a preocupação
dos agentes estabelecidos, os detentores do poder, em buscar seu
controle ou mesmo em usá-la contra seus inimigos.
Embora tenha
sido apresentado que nem toda charge procura produzir o riso e não é
sua função primordial tal coisa, sem dúvida, na grande maioria das
charges, em especial as que contêm caricatura(s) em seu interior, o
riso é preponderante. O artista procura produzir o risível. No que
se refere à charge, ela pode conter uma ruptura inesperada ao final
de sua leitura/compreensão pelo observador. Tal ruptura é uma, ou
a, causa do riso. A crítica ou o uso da zoomorfia para, em geral,
desqualificar ou desnudar o caráter de um inimigo, o desmascaramento
pela inteligência do artista ou o uso de cena grotesca podem
provocar riso e até gargalhadas.
O riso é um
ato natural do ser humano, mas deve ser analisado como algo
historicamente construído, em especial se se pensar no que é
risível. Nesse
sentido, é interessante perceber como o riso (e o risível) pode ser
localizado espacial e temporalmente, pois é uma construção
histórica dentro das sociedades humanas. Assim, consideramos o riso
uma expressão de sua sociedade, faz parte de um projeto social, de
um projeto político. O que é risível hoje pode não ser amanhã. O
que é socialmente permitido (aceito) hoje, pode não ter sido ontem.
Por sua importância nas relações humanas, o riso foi entendido e
interpretado de várias formas.
Para
Propp (1992), cada época tem seu sentido de humor e de comicidade, e
ele sugere a existência de diversos tipos de riso: riso da zombaria
(crítico, com sentido de punição, contendo diversos sentimentos de
quem ri, como ódio, satisfação e alegria); riso bom (educativo,
realizado com afeto, construtivo); riso maldoso (carregado de ódio
de quem ri, fruto de seu fracasso, precisa se sentir superior - é um
riso destruidor, provavelmente construído em falsos pressupostos);
riso cínico (o prazer está na queda do outro, quem ri carece de
piedade); riso alegre (sem punição, ódio ou qualquer outro sentido
de quem ri, apenas a alegria pelas coisas alegres, de humor, lúdicas
até); riso ritual (quem ri o faz por padrão construído, ou seja,
faz parte do rito estabelecido). O riso da zombaria, sem dúvida, por
conter os sentimentos mais variados e ser mais facilmente realizado
no cotidiano pela maioria das pessoas, é merecedor de mais atenção
e o que se encaixaria nas festividades carnavalescas e nas charges de
humor. Mas o riso cínico talvez seja o mais comum, hoje, nos meios
jornalísticos e o encontrado nas vias públicas. O riso maldoso, na
sociedade atual, deve ser pensado, pois, somado ao riso da zombaria,
pode conter o preconceito, comum na sociedade, mas aumentado em
épocas de crise (econômica e de limites), como o preconceito
racial, social, sexista, nacionalista entre outros (ver também VALE,
2013).
Para
Platão, por exemplo, o riso desestabilizava a razão, impedindo o
homem de ver o mundo como ele era, ou seja, como este pode governar
se não tem a capacidade de compreender a si e ao seu mundo?
(FERREIRA, 2013, p. 41).
Para
Sócrates, não se devia rir de um amigo, pois seria uma injustiça,
traria em seu bojo a inveja. Para ele, não é permitido ter prazer à
custa de tristeza de um amigo (FERREIRA, 2013, p. 41). Mas nada
contra rir do inimigo, pois este é inferior, deve servir ao outro,
pode proporcionar prazer, que é a essência do riso. O risível só
pode estar naquele que não é próximo.
Uma
questão bíblica importante: Jesus riu? Uma questão teológica que
tem gerado debates, pois coloca o riso como peça central. É lícito
rir? Quando? De quem? Minois (2003) afirma que no Paraíso não
haveria razão para rir, pois o mundo era perfeito e harmonioso. Foi
com o Pecado Original que o mundo se desequilibrou e o riso surgiu.
Aqui podemos discordar de Minois, pois o riso não é necessariamente
um desvio, pois ao ver algo belo (Eva, por exemplo) Adão poderia
sorrir, um riso de alegria, comunicativo, que causaria um sorriso do
sentido contrário. De um sorriso, Eva e Adão poderiam partir para
um riso. A vida bucólica do Paraíso, com as sensações das
descobertas, certamente causaria o riso nos dois habitantes. Esse
mesmo autor apontou para a existência, na sociedade, de vários
risos (como Propp), podendo ser agressivos, sarcásticos, amigáveis,
entre outros. Podem se originar de formas diversas, como a irônica,
burlesca ou grotesca, na maneira ambígua, multiforme ou ambivalente.
Seriam todos apenas depois da expulsão do Paraíso?
Para
Baudelaire (1998), o riso humano estaria intimamente ligado à
degradação física e moral de alguém, à feiura física de moral
do homem. Tanto o riso como a lágrima são filhos da aflição,
portanto, trazem também a possibilidade de redenção. No Paraíso
não haveria dor, portanto, a ausência do riso e da lágrima. Esse
autor também difere a alegria do riso, pois o primeiro existe por si
mesmo, o segundo é um sintoma. A primeira é, o segundo
contraditório. O primeiro seria como o sorriso de uma criança,
inocente, o segundo o riso de um homem (verdadeiro, violento) causado
pelo grotesco. Baudelaire destaca em sua obra que o riso vem da
superioridade do homem sobre o homem. Por fim, um aspecto que chama
atenção, ligado a essa questão, é que o risível não estaria na
coisa, mas no leitor, é neste que se encontra o cômico, pois é sua
forma de pensar o outro que torna a coisa risível.
A
Igreja Católica, detentora do poder político e ideológico na Idade
Média, buscou construir uma ideia de o riso ser aliado do diabo, uma
vez que aquele poderia ser visto como um importante ingrediente na
desconstrução da ordem estabelecida se não fosse contido,
controlado (FERREIRA, 2013, p. 43).
Segundo
Vale (2013, p. 90), no Renascimento o riso ofereceu ao homem se
mostrar civilizado, inteligente e espirituoso. Podia-se tornar
estimado pelas pessoas, conquistando novos amigos e, por fim, obter
técnicas para se esquivar do ridículo e do riso alheio. Para
Bakhtin, é nesse período que o riso passou a ter uma significação
positiva, criadora e regeneradora.
Para
Freud (1996), seguindo sua linha de raciocínio, o riso estaria
vinculado ao alívio, necessário diante das repressões que a psique
sofre (gera). O riso surge, então, como um muro protetor à dor, ao
desconforto, à opressão (que não deixa de existir com o riso).
Nesse sentido, essa teoria muito bem se aplica ao carnaval, uma festa
de transgressão, cantorias e descontração, pois é por meio dessas
ações que o homem alcança o riso, uma alegria inexistente nos
outros dias do ano. Relembrando que o carnaval possibilita essas
ações por diversas formas/sentidos (escrita, verbal, visual,
auditiva etc.), o riso pode ser solto: pode-se gargalhar, “morrer
de rir”, não há limites. Aparentemente, pode-se rir de tudo e de
todos, até de si mesmo.
Considerando
o carnaval como uma festa popular às avessas, quem está em cima
fica por baixo e quem está em baixo fica por cima, o homem se
transveste de mulher e a mulher de homem, é a festa das
contravenções, liberdades, liberalidades, críticas, xingamentos e
outras formas de burlas. Isso em sentido amplo, pois envolve o
visual/imagem (cores, texturas, vestimentas/fantasias, carros
alegóricos etc.), a linguagem (musical, verbal, escrita e corporal)
e o espaço ocupado pela festa (público, privado, oficial,
eclesiástico etc.). Há a construção de cenas grotescas, lúgubres,
coloridas, coletivas, individuais, políticas, lúdicas etc.,
representação de desejos reprimidos, contra políticos,
governantes, ódios, sexismo etc.
Neste
sentido, voltando ao escritor Bakhtin (1993), este fornece
importantes informações sobre o carnaval na Idade Média, onde o
riso era permitido, a transgressão era uma norma, mas tudo
devidamente dentro de limites controláveis. Apresenta um riso, o
riso festivo, que seria coletivo, pertencente ao povo e nascido com
ele. Mas, talvez e principalmente, é um riso da burla, sem ser
destruidor do status quo;
iguala os homens, mas não em um mundo irreal, e a estabilidade do
mundo é restabelecida com o fim do carnaval. O medo é substituído
pela alegria e o riso. Pode-se rir de tudo e de todos, um riso livre,
quase espontâneo (ou se ri agora ou nunca mais). Seu limite é
temporal, preciso, limitado. Mas, em uma sociedade uniforme, sem
conflitos, harmoniosa, haverá o riso carnavalesco? Existe esse riso
carnavalesco hoje? Talvez Bakhtin tenha deixado uma luz na questão,
ao colocar o carnaval em seu espaço físico e temporal: “O
carnaval propriamente dito [...] é uma forma sincrética de
espetáculo de caráter ritual, muito complexa, variada, que sob base
carnavalesca geral, apresenta diversas matizes e variações
dependendo da diferença de épocas, povos e festejos particulares”
(1997, p. 122).
A
produção do riso por meio da imagem, do texto, das vestimentas, das
letras das canções, das cores, enfim, uma infinidade de realidades
que se cruzam ou não e formam o cômico, o humor, o risível,
analisadas neste texto, estão associadas ao período carnavalesco
carioca (dezembro-março). O riso causado, sóbrio ou escancarado,
vai depender de quem ri e do que ri. As imagens com tema carnavalesco
poderão ou não agregar os itens considerados, mas vai depender do
tema tratado e da(s) pessoa(s) envolvida (s) nas imagens.
Diferente
da comicidade falada ou da escrita, em que o ouvinte ou leitor
constrói em sua mente a imagem do discurso de humor para depois ser
produzido o riso, na charge e nas fantasias do carnaval a imagem já
está dada, geralmente pouco necessitando de interpretação.
Portanto, no caso do canto, dá-se o primeiro, ao ouvir a música,
que pode conter diversas formas de acionar o riso (descrição de um
fato cômico, em geral produzindo rima), o ouvinte visualiza o fato e
depois cai no riso, que aumenta para gargalhada ao participar
cantando. No caso da charge, como foi dito, o quebra-cabeça deve ser
montado, o que pode envolver escrita e imagem. No caso de algumas
charges analisadas neste texto, farão uso da letra de música para
enriquecer a mensagem, cômica ou não, mas sempre crítica.
CARNAVAL,
CHARGE, RISO E POLÍTICA
OFICIALIZAÇÃO
DO CARNAVAL E AS CHARGES
Charge
01
Charge
02
A
charge 01, de fevereiro de 1931, publicada na revista Careta,
busca o riso fácil. Com traços simples, dois cidadãos conversam
sobre a traição feminina. “Encontrei minha mulher com o talzinho.
Tenho hoje certeza que a minha suspeita se justificava”, diz um dos
homens. A outra pergunta: “Vais tratar do divórcio?” Seu
parceiro de conversa responde: “Qual divórcio! Tenho lá tempo
para isso, e logo agora com o Carnaval...” A charge 02, intitulada
“O carnaval de 1933”, publicada na revista O
Malho, também é
significativa para entender a importância do carnaval que os
desenhistas quiseram mostrar para o povo. Médico branco atende
família negra, que fala um português errado. “-Tará difunto?”,
pergunta a senhora. O médico, então, questiona ao “seu”
Bastião: “Vamos ter carnaval?” O Bastião responde: “Vamo sim
siô, e du bom”. Em síntese, carnaval levanta defunto, adia
divórcio. A alegria corre nas veias do povo e sua alegria maior está
no carnaval, seja na doença, seja na traição.
Essa
forte relação do povo com o carnaval nunca passou despercebida
pelos que detinham o poder. A remodelação da cidade do Rio de
Janeiro, no início do século XX, se não marcou o início da busca
pelo controle da festa, pelo menos deu um impulso. Hábitos
cotidianos, como vender animais nas ruas do centro remodelado, foram
reprimidos, festas e procissões religiosas e pagãs igualmente. A
inclusão de novos hábitos e vestimentas festivas foi estimulada, a
europeização do carnaval foi bem-vinda. Pierrôs e Colombinas
substituíram a fantasia popular do diabo e de dominó (CUNHA, 2008,
p. 169). Automóveis, com a elite branca fantasiada, formando uma
unidade por meio de serpentinas (os corsos), foram o sucesso do
carnaval de então. Os ranchos e as associações (clubes)
carnavalescas, que tinham como seus sócios elementos de diversas
categorias sociais, passaram a dominar o carnaval com seus desfiles
na avenida recém-aberta (Av. Rio Branco), onde seus carros
alegóricos chamavam a atenção pelas suas dimensões, cores e
elementos decorativos.
O
carnaval como festa popular não parava de crescer, em todas as
partes da cidade blocos carnavalescos saíam às ruas para comemorar
a data. O germe das escolas de samba estava surgindo, atingindo seu
ápice no início da década de 30.
Charge
03
Charge
04
Charge
05
Três
Charges de Storn, publicadas na revista Careta,
trazem cronologicamente a visão do artista sobre o apoio financeiro
da prefeitura da cidade do Rio de Janeiro (Distrito Federal) nos anos
de 1931 e 1932. A charge 03 apresenta o personagem clássico do Zé
Pereira, com seu bumbo (onde está escrito “carnaval de 1931”),
devidamente fantasiado e com um chapéu estilo coco (onde se lê a
frase: “tristezas não pagam dívidas”, - ver discussão sobre
essa música mais adiante). Zé Pereira estende o prato solicitando
ajuda ao governo federal para o carnaval. O presidente Vargas
responde que não poderia ajudar por ter gasto todo o dinheiro com o
“carnaval de rua de outubro do ano passado”. Para o carnaval
festivo não havia dinheiro, mas houve para o carnaval revolucionário
de 1930 (“revolução de 03 de outubro de 30”, que depôs o
presidente eleito Washington Luiz, 1926-30). Como vimos, a revista
não apoiou o chamado movimento “revolucionário” e, seguindo
essa linha, o artista compara esse movimento a um carnaval.
Na
charge 04, 10 meses depois da primeira, Storn volta à carga, agora
anunciando uma trégua política no carnaval, onde as sociedades
carnavalescas “Tenentes do Diabo” (de roupa escura) e
“Democráticos” (de roupa clara) teriam formado uma frente única
para defender o carnaval (título da charge). O prefeito-nomeado
Pedro Ernesto, que era médico, diz ao seu chefe Vargas que todos
estavam aderindo ao Tenentismo (corrente importante que apoiou a
“revolução de 03 de outubro de 30” e que se organizava em torno
do Clube 3 de Outubro e do qual Pedro Ernesto era presidente).
Novamente, objetivando o riso e a crítica, o chargista relaciona um
fato do carnaval com a política nacional.
Por
fim, a charge 05, de 30 de janeiro de 1932, com o título “Subvenções
carnavalescas”, mostra o prefeito Pedro Ernesto oferecendo um saco
de 25 contos para um mascarado fantasiado, simbolizando as grandes
sociedades. Para este, Pedro Ernesto diz: “É pouco? Pois se deem
por muito felizes. Eu sou presidente do “Club 3 de Outubro” e ele
não leva nada!...”. Novamente o chargista menospreza os “tenentes”
que possuem uma associação, deixando transparecer ser um clube
carnavalesco, local de festas e bailes, e não uma agremiação
política séria.
Pedro
Ernesto foi um pernambucano que veio concluir seu curso de medicina
no Rio de Janeiro, e se sustentava fazendo desenhos e tocando
instrumentos musicais. Quando jovem, atuou na vacinação nos morros
cariocas, o que lhe possibilitou fazer muitas amizades e ser
convidado como padrinho de muitas crianças. Então era um sujeito
que conhecia bem as necessidades financeiras e de assistência social
e educacional da população carioca, assim como sua cultura popular.
Quando de sua morte (1942), diversos recibos de pagamento de remédios
e gastos com sepultamentos foram encontrados em sua gaveta na Casa de
Saúde Pedro Ernesto, uma das mais importantes da cidade
(GAWRYSZEWSKI, 1988). Ou seja, foi um benfeitor para seus pacientes e
amigos pobres.
Pedro
Ernesto foi um expoente, desde 1922, no movimento tenentista, que
atuou diretamente na “revolução de 30”. Ao assumir a prefeitura
da cidade do Rio de Janeiro (Distrito Federal), buscou fazer uma
administração voltada para a educação e saúde, e via no turismo
uma importante fonte de renda para gerar impostos. Além dos
cassinos, que foram abertos na cidade, Pedro Ernesto viu no carnaval
outro forte instrumento de atração turística. Assim, em 1932, o
carnaval, com o desfile das sociedades carnavalescas, passou a estar
inscrito no programa oficial das festas da cidade. Por meio dessa
oficialização, as Sociedades Carnavalescas obtiveram apoio
financeiro para o melhoramento de seus desfiles (como visto na charge
05). Essa iniciativa teve grande repercussão e apoio na imprensa
carioca (GAWRYSZEWSKI, 1988). A charge 06 apresenta Pedro Ernesto,
devidamente fantasiado, sobre os ombros do rei Momo, com uma flâmula
na mão direita onde está escrito “Viva a imprensa”. Ao fundo, o
apoio de um folião. O rei Momo se dirige para o “Novo Congresso”.
Nesse momento, o congresso estava fechado (desde a “revolução de
outubro de 1930”). Intitulada de “Carro de Crítica” (era um
típico carro alegórico do carnaval carioca), pode sugerir o
despontar de um novo político popular, com assento garantido em um
novo congresso (mas, qual cadeira?). Mas, também, pelo título, pode
indicar que o novo congresso seria composto por foliões políticos
ou políticos foliões, tornando cômica a visão da nova política
nacional.
Charge
06
Diversos
autores apresentam essa oficialização do carnaval e,
posteriormente, a inclusão das escolas de samba como receptoras de
verbas públicas, como mais uma forma de manipulação política, ou
seja, incorporar para controlar (ALMEIDA, 2013; CONNIFF, 2006).
Colocar o papel de Pedro Ernesto nessa perspectiva não contribui
para compreender essa nova relação do estado com a sociedade e
sindicatos no pós-30. Pelo contrário, ao se colocarem todos os
políticos e suas ações em um mesmo conjunto, ignoram-se as
diversas correntes (projetos políticos) que estavam em jogo no
período. Se na charge 03, por exemplo, Vargas não apoia o carnaval,
e se nas charges 04 e 05, Pedro Ernesto vê com bons olhos um diálogo
com os setores populares, o que se conclui (fora os aspectos críticos
e cômicos das imagens) é que havia diferenças de visões dos que
estavam no poder. Por fim, a charge 06 aponta Pedro Ernesto como um
novo líder popular (ou carnavalesco?). A oficialização do carnaval
foi motivo de diversas charges das revistas aqui estudadas, às vezes
de difícil compreensão, pois exigem uma leitura com conhecimentos
de fatos específicos da época. Abaixo, duas imagens como exemplos.
Charge
07
Charge
08
Na
charge 07 um rei Momo (com traços semelhantes aos de Vargas)
despacha com seus subordinados, também devidamente trajados, sobre a
oficialização do carnaval de 1934 (charge é de 21/12/1933). Às
quintas-feiras o rei Momo presidiria os despachos coletivos, pois
passou a haver uma repartição pública para administrar o carnaval
oficial. Ou seja, mais um cabide de empregos públicos. Seria
composto pelo Pierrô, a Colombina, o Zé Pereira? Seria o gabinete
do rei Momo decorado com serpentinas e sobre a mesa haveria sacos de
confete? O que o leitor teria imaginado ao ver tal imagem? Riso pelo
deboche? Raiva pelos impostos pagos? Os dois?
A
charge 08 vai no mesmo sentido. Datada de 18/02/1933, portanto, dois
meses depois da anterior, próximo das festividades carnavalescas,
traz dois funcionários públicos vestidos a caráter, ou seja,
prontos para brincar o carnaval. “Somos funcionários públicos.
Estamos cantando e dançando por conta do governo”. Se os jornais
diários (O Globo,
Jornal do Brasil,
A Nação,
entre outros) apoiavam a concessão financeira às entidades
carnavalescas, os chargistas de O
Malho e Careta
aproveitaram a oportunidade para apresentar seu lado da questão, não
propriamente contra a concessão, mas com críticas ao modelo
administrativo existente nos serviços públicos.
Passados
alguns anos, duas charges mostram mudanças significativas na
organização da festa carnavalesca. Em abril de 1935 foi instituída
a Lei de Segurança Nacional (LSN), após longo tempo de tramitação
no Congresso Nacional. Em 1936 foi ainda mais radicalizada, com a
criação do Tribunal de Segurança Nacional, criado para julgar os
crimes previstos naquela lei. E, em novembro de 1937, foi implantada
a ditadura do “Estado Novo” (1937-45), que fechou o Congresso
Nacional, e cassou deputados, senadores, prefeitos e governadores. A
liberdade de imprensa estava suspensa e as garantias pessoais e
constitucionais do cidadão idem. Na charge 09, o presidente Vargas
contratou o rei Momo para o carnaval de 1935, mas o advertiu para que
não houvesse excessos liberais em função da LSN. Nota-se que a
charge é anterior à aprovação da referia lei. A sutileza de
“elefante” de Storn chama a atenção para seu compromisso de
denunciar uma situação que adviria em breve: controle das
liberdades individuais e coletivas. Vargas é apresentado como um
homem desligado do pensamento liberal e democrático. Contrata Momo,
mas o tenta controlar. Destaca-se a desproporção entre os dois
corpos.
Charge
09
A
charge 10 é de autoria de J. Carlos, chargista que se posicionou
francamente contra o “Estado Novo” e em defesa das liberdades
democráticas. Aproveita uma brecha na censura e consegue publicar,
em capa, uma imagem aparentemente lúdica, mas com forte conteúdo
político. O carnaval, como no caso da charge anterior, é usado como
pano de fundo para denunciar a ditatura recém instituída.
Intitulada “As meninas do barulho são de paz”, mostra que, ao
chegar em casa, o pai, um senhor com traços simplórios, se espanta
com a cena que se apresenta e pergunta: “Uê! Que negócio é esse?
A família toda reunida!” A senhora responde: “As meninas querem
saber se há alguma lei nova contra o Carnaval”. A que lei elas se
referem? Por que haveria lei contra o carnaval? Contra o carnaval ou
por temas das letras dos sambas, das charges sobre o carnaval, ou
charges relacionando carnaval com o governo ou por carros alegóricos
contestadores do regime ou, pelo contrário, com exigências?
Exigências de sambas exaltadores do regime, da vida pelo trabalho,
da vida feliz nos morros? Enfim, J. Carlos deixou em aberto muitas
possibilidades que, na realidade, já estavam em andamento pelo
regime estadonovista. O riso é demolidor, denunciador. Os que viam
com críticas a situação nacional no pós-37 não poderiam deixar
de sorrir pela satisfação pela imagem proposta, pela denúncia
contida.
Charge
10
CARNAVAL,
MÚSICA E CHARGE
Charge
11
Charge
12
A
charge 11 (05/01/1935) é rica em detalhes - com título, legenda,
letra de música, representação da república (de 30), malandro com
sua vestimenta e os espaços urbanos definidos - e nos traz novamente
a figura de Getúlio Vargas. O título “Isso não é conosco” é
uma referência de que as palavras não tinham nada a ver com os
personagens, que poderia ser até mais uma frase de Vargas,
semelhante ao que disse à república: “Não faças caso. São as
novas cantigas do carnaval...”. Ao ouvir a música (“Você me
pareceu sincera! Mas não era!...”), a personagem feminina (com o
barrete frígio na cabeça, signo da república francesa, devidamente
adaptada ao Brasil pela data e pelos trajes de praia) voltou-se para
o cantador e prestou atenção ao mesmo. O sambista, tipicamente
trajado (não com a camisa listrada, mas a calça), com lenço no
pescoço, como que saindo da favela - o morro, onde nasceu o samba,
devidamente retratado, com as roupas ao vento, em contraposição à
cidade, caracterizada pelos prédios, toca seu violão. Pode-se
traçar uma linha diagonal na imagem, onde se vê, claramente, a
divisão existente entre a cidade dos prédios (da “república”?)
e a cidade dos barracos (do “povo”?).
A
letra da música, intitulada “Joia Falsa”, escrita por Osvaldo
Santiago, foi gravada para o carnaval de 1935 pela voz de Gastão
Formenti. Vê-se, mais uma vez, a música e a carnavalização da
política, ao se colocar na voz do povo mais humilde a ilusão do que
estava sendo a república pós-30. Uma desilusão, pois a mesma não
era sincera, apenas aparentava. Ao desprezar o cantor, Vargas ignora
o povo e se apega ao poder. O chargista Storn busca o riso crítico,
sua obra visa denunciar os descasos do governo, desmascarar a figura
do presidente Vargas.
Três
meses depois, logo após o carnaval, Storn volta à carga contra
Vargas, conforme se vê na charge 12 (16/03/1935). Desta vez sem
título e sem grandes detalhes, dois personagens com traços de serem
desprovidos de recursos financeiros, comentam com Vargas que a
situação não estava para risos. Este, gargalhando, responde: “Ora
bolas! Tristezas não pagam dívidas!...”. Vargas de riso passou
para a gargalhada, com a boca bem aberta, dentes à mostra e mãos na
barriga, deixando claro sua alegria com a resposta imediata. O leitor
não ri do presidente, este sim ri do leitor. A palavra “tristeza”
se contrapõe à alegria do chargeado. A ambivalência está posta em
detrimento do leitor. A charge não é geradora de riso, mas de
inconformismo, de raiva. Uma música carnavalesca, que o povo cantava
nas ruas e que não tinha relação com a questão econômica, mas
com a dívida feminina para com o seu homem amado.
Para
o carnaval de 1932, uma letra teve destaque nas charges das revistas
O Malho e
Careta:
“Gosto, não é muito”, de autoria dos famosos compositores Noel
Rosa e Ismael Silva, sendo gravado pelo mais importante cantor de
então, Francisco Alves, o “Rei da Voz”.
Olha,
escuta, meu bem/ É com você que eu estou falando, neném/ Esse
negócio de amor não convém/ Gosto de você, mas não é
muito...muito! /Fica firme, não estrilha /Traz o retrato e a
estampilha/ Que eu vou ver/ O que posso fazer por você.
Seu
amor é insensato/ Me amofinou, mesmo, de fato/ Não leve a mal/ Eu
prefiro a Lei Marcial.
Charge
13
Na
charge 13, intitulada “Pedro Ernesto (Ainda sob os vapores do
Carnaval)”, há a figura do prefeito da cidade, Pedro Ernesto,
devidamente vestido para o carnaval e na mão direita um instrumento
típico dessa festa, o violão. Duas outras figuras compõem a
imagem, um com sua roupa de carnaval, o outro de traje comum, ambos
identificados como contribuintes da municipalidade. Ao chão, um saco
de confete. Da boca de um contribuinte sai um estribilho da música
“Gosto de você, mas não é muito!...”. O outro está de boca
aberta, mas, aparentemente, nada diz. Pedro Ernesto aponta para o
contribuinte que canta, está sorrindo. A charada é quem está
cantando a parte da legenda, se Pedro Ernesto ou o contribuinte
cantador. Como a letra solicita um retrato em uma estampilha, que é
o selo do imposto, o cantador deve ser o prefeito. Entendido assim
para o leitor, quis o autor da charge apresentar, por meio do riso,
uma situação de 1932. O prefeito goza de prestígio junto ao povo,
mas não é muito! Pedro Ernesto simplesmente cobra mais um imposto
para tentar fazer alguma coisa pelo contribuinte. A dualidade que
causa o riso é justamente a reclamação dos impostos ter gerado
mais um pedido de estampilha. Ri-se da situação e da solução, mas
com tom de crítica.
Charge
14
Charge
15
Charge 16
Na
charge 14, capa de janeiro de 1932, há uma grande banda regida pelo
maestro Vargas. Instrumentos de percussão, sopro e o violão
completam o quadro sonoro. O samba executado tem por nome “Nós
queremos gozar”. O pronome pessoal deve ser dirigido ao maestro e
aos músicos (“A Fina Flor”). O dono da batuta canta: “O teu
feitio não nega, gaúcho...” e a Fina Flor complementa: “Somos
gaúchos e dos bons. É com você que estou falando, meu bem!”.
Conclui o batuta: “Esse negócio de eleições não convém...”.
O chargista colocou Vargas conduzindo a batuta e os mais proeminentes
correligionários políticos da “revolução de 30” como músicos.
Qualificou a estes como “a Fina Flor”, com o sentido claramente
contrário, ou seja, pejorativo. Trocou palavras das letras de
carnaval e, ainda, misturou duas canções. O ano de 1932 foi o ano
da luta pelo retorno à normalidade política, e esta se daria por
uma nova constituinte (só convocada em 1933). Durante o ano de 1932,
diversas charges foram produzidas deixando claro o descompromisso de
Vargas com mudanças políticas. Toda a cena é cômica na medida em
que coloca importantes membros do governo em situação de
inferioridade e cantando música política em ritmo carnavalesco.
Clamando pelo restabelecimento da democracia no Brasil, o chargista
denuncia o projeto desses elementos em não a promover.
Na
capa de O Malho (charge
15), de fevereiro de 1932, vemos a “mascote” (Cardoso) da revista
rindo e observando os políticos tradicionais cansados depois de uma
intensa batalha (de confete!). Getúlio (com ou sem máscara?), sem
fôlego, diz: “Terminou o carnaval, vem depois a constituinte, a
seguir a eleição presidencial... que será de mim?”, Borges de
Medeiros, seu aliado político, responde: “Tenha calma, Gegê, vou
ver se faço alguma coisa por você...” Da mesma forma, a revista
Careta
desse mesmo mês apresenta em sua capa (charge 16) um grande carro
alegórico, com uma banda tocando uma música, sendo seus músicos
todos os elementos de proa do governo vigente. Um cartaz, dentro
dessa grande festividade, tem escrito: “Não desanime Gegê, que eu
vou ver o que posso fazer por você!...”. Uma legenda abaixo
explica a imagem: “O carro dos chefes da grande folia...”
Destaque para o personagem, a música e a festividade como a unidade
das charges apresentadas. Na primeira imagem o carnaval havia
passado, na segunda ainda estava sendo realizado. A primeira explica
a segunda, depois da folia estavam todos exaustos. A folia da capa de
Careta
fala de uma grande folia. Seria do carnaval ou da política? Na
primeira capa, com o título de “Cinzas” (quarta-feira de
cinzas), Vargas disse que acabou o carnaval. As próximas folias
seriam diferentes? Afinal, Gegê deve trazer o retrato e a estampilha
para seus “amigos”? Estes fariam alguma coisa por ele ou
prefeririam
a Lei Marcial?
Charge
17
A
charge 17 é de janeiro de 1931, ou seja, antes de o carnaval se
iniciar. Na porta, um sujeito fantasiado, com máscara e pandeiro na
mão. Em um tablado, perto de uma cadeira de espaldar alto (símbolo
de poder), está Vargas (lembrando que ele era baixinho) com uma
máscara de Vargas, com feição bem feliz. O Zé Folião fala para
Vargas: “Excelência, o carnaval está na porta, vamos nos
divertir!” Assim responde: “Então espere, que vou tirar a
máscara”. Quando todos colocam a máscara, para provocar o riso,
para brincar o carnaval com suas fantasias, ocultar de sua
identidade, o presidente Getúlio Vargas vai em sentido contrário,
ou seja, vai tirar a máscara? Storn mais uma vez trabalha com a
dualidade, agora fantasia/realidade; mascarar/desmascarar. Afinal,
qual a verdadeira face de Vargas? A máscara, na verdade, é uma
metáfora de seu caráter. Qual o verdadeiro caráter de Vargas?
Desta vez o leitor está rindo do personagem político, pois é dada
a possibilidade de refletir, tomar consciência de quem de fato é
Vargas. Lógico que o inimigo irá rir mais, o amigo pode ter uma
leitura diferenciada, pois pode vê-lo como uma “raposa política”,
aquele que consegue ‘despistar” seus adversários. Ou não, pode
ver a charge sem o motivo para rir, ao criticar seu líder político.
A
outra charge (charge 18), capa da revista Careta,
de março de 1933, se passa após o carnaval. Todos os personagens
ainda de ressaca, com confetes em seus cabelos e nas roupas, com as
devidas fantasias depositadas em uma cadeira, são despertados por um
cidadão fantasiado de roupas de carnaval, sem nenhum amasso, com uma
urna eleitoral sob o braço esquerdo. Este diz; “Acorda, pessoal! O
outro carnaval está na porta!...”. Irão os políticos colocar
suas fantasias de carnaval ou as fantasias eleitorais? Ao chamar as
eleições para a Constituinte de 1933 de carnaval, o fantasiado
iguala esta festa festiva, desprovida de seriedade, à festa
política, ato coletivo de eleger os representantes do povo para
elaborar a mais alta lei de um país. Qualifica o carnaval ou
desqualifica as eleições? Evidentemente o riso se torna sério, a
charge crítica, critica o fazer eleições no Brasil com os
personagens políticos expostos. A dualidade festa/seriedade foi
colocada em xeque, tudo se tornou uma festa, mas no caso das
eleições,
só alguns se divertem e jogam confetes usando suas fantasias.
Charge
18
O
Malho, em pleno carnaval
de 1933, publicou na capa a charge 19 onde ao fundo se vê uma enorme
máscara carnavalesca a sorrir, e dois personagens. Vargas,
“fantasiado” de presidente, e o Jeca, fantasiado para o carnaval.
Vargas diz ao Jeca: “Venha cá, Jeca! Você precisa entrar para o
Partido Nacional...”. A figura, que representa o povo brasileiro,
responde: “Entrá?! Já tou
dentro!... Isso é rancho ou é cordão?!...”. As escolas de samba
e seu carnaval na Praça XI não se apresentam nessa charge, apenas o
carnaval tradicional composto pelos cordões e pelos ranchos (talvez
por isso o Jeca seja branco e sua fantasia exógena). Ao responder
que já estava dentro, tendo por dúvida apenas se estava ingressando
em um rancho ou cordão, o chargista criticou a política brasileira.
O riso se instala na inesperada resposta de Jeca, depois no
desconhecimento (ou conhecimento) do que seria a política nacional.
Seria o Jeca ignorante político
ou a política brasileira um carnaval?
Charge
19
Charge
20
A
charge 20 possui um título sugestivo: “Pane e circenses”. O Rei
Momo está já caído de cansaço, coberto de confete. O cidadão (o
carioca), sem fantasia, apenas a máscara sorridente já descolada do
rosto, responde a Vargas e a outros elementos de proa da política
nacional: “Eu quero mais carnaval senão vou fazer política!...”.
A verdadeira feição do “carioca” parece transparecer ser
infeliz, diferente de sua máscara. Vargas, a sorrir (talvez da
resposta, talvez de alívio), observa. Afinal, o carioca é um
alienado político ou só é feliz no carnaval? Sua ameaça estaria
em tornar a política séria ou a política ter participação
popular? O riso desconstrói a imagem da política séria de pós-30
e a política de massas. A política de pós-30 ainda não havia sido
absorvida pelo “carioca” de forma objetiva e verdadeira. Para
onde o Brasil iria após o carnaval?
Charge
21
Na
charge 21, por fim, se veem estrelas brancas em fundo azul, uma
mulher representando a política nacional e o rei Momo feliz, indo
embora. “Psiu! Momo! Antes de dar o fora passe para cá o espectro
e a coroa”, disse a mulher ao outro personagem. O riso é geral,
acabou o reinado de Momo. Agora a república assume. Mas, qual a
diferença entre os sistemas de governo? Será que o espectro da
política também possui uma cabeça de palhaço na ponta ou foi
apenas uma adaptação para os dias de carnaval? Sem autoria, essa
charge muito bem poderia ser da concorrente Careta,
assinada por Storn. Assim, entre as revistas utilizadas aqui como
fontes da pesquisa parece haver uma sintonia em relação ao fazer
rir, o denunciar, o desqualificar por meio da comparação ou
similaridade entre os dois eventos “festivos”, o carnaval e o
fazer política.
NOTAS
FINAIS
A
quantidade de imagens disponíveis para análise contendo máscaras,
fantasias, carros alegóricos, letras de músicas, temas políticos e
carnavalescos, problemas urbanos da cidade, conflitos nacionais e
internacionais, permite um sem fim de possibilidades de recortes.
O
riso para uns pode ser a tristeza para outros. Quem ri por último ri
melhor? Os poderosos riem por último ou riem sempre? O riso e o
risível têm seu valor e desvalor, a sua importância, e são
perigosos conforme o tempo. Aquilo de que se ri hoje pode ter sido
interdito ontem. Ou o contrário. Nesse sentido, qual o papel do
carnaval no riso ou deste no carnaval? Perguntas e respostas das mais
variadas, sendo as respostas longas e contraditórias conforme o
caso. Baudelaire afirma que o risível está em nós, mas no caso
deste trabalho fomos nós que produzimos as imagens. Então, o
risível está em nós por nós.
Neste
trabalho, o carnaval foi o grande pano de fundo para os chargistas de
O Malho e
Careta
produzirem suas críticas ao sistema político vigente, ao estado
produzido no pós-30, sobre a participação popular no novo regime.
A ditadura criada no pós-Lei de Segurança Nacional e, em especial,
com a implantação do Estado Novo (1937-45), fechou as portas para a
charge política, a charge crítica. Apenas a charge de costumes
continuou permitida, mas sob controle. Mas, mesmo com a censura,
Storn e, principalmente, J. Carlos, tendo o carnaval como mote,
produziram pelo menos duas charges que desmascaravam o momento
ditatorial que o Brasil passava. A charge, no caso deste trabalho,
ajudou a compreender não a realidade, mas como duas publicações,
com seus artistas, retrataram com sua arte o que o país vivia em
termos políticos. O carnaval não estava sempre nas charges, mas a
crise econômica, social e política (principalmente) estava quase
sempre.
FONTES/PERIÓDICOS
Revista
O Malho – 1930-1937
Revista
Careta – 1930-1937
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
ALMEIDA,
Paula Cresciulo de. Um samba de várias notas: Estado,
imprensa e carnaval no Rio de Janeiro (1932-1935). Mestrado em
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